Quando o Orçamento ‘have no name’ (não tem nome)

Com um Orçamento do Leão, do Medina ou sem progenitor legítimo atribuído, uma certeza fica: os próximos anos serão anos de convívio com a Inflação e a Austeridade.

Com o Orçamento de 2022 aprovado e arrumado, o Sr. Presidente da República já pode descansar pois as suas legítimas preocupações com um prolongado regime de duodécimos estão ultrapassadas e o governo deixou de ter mais um álibi para continuar a ignorar os objetivos essenciais para o país, ou seja o crescimento económico e a coesão social.

Os meios financeiros existem, como sabemos, e, embora maioritariamente orientado para a administração e setores públicos, o PRR começa a entrar em velocidade de cruzeiro, apesar do vazio orçamental.

A maioria absoluta, inesperada e em certo sentido caída dos céus, é uma garantia de que o governo, se desejar optar pelo reformismo, não encontrará grandes obstáculos.

E a oposição, dividida, desmoralizada e em processo de reconversão, só constituirá uma alternativa, na melhor das hipóteses, dentro de três ou quatro anos.

Um cenário, por isso, altamente favorável ao poder atual que, não terá grandes dificuldades políticas no futuro imediato mas que também eliminará todas as desculpas para o não cumprimento dos objetivos essenciais.

Só que para que tudo corra bem é necessário que o poder (conceito mais amplo que “governo) saiba resistir à ‘armadilha do absolutismo da maioria’, porque isso é condição essencial para abandonar o estado de estagnação que se tem vivido nos últimos anos.

Ora, foi neste quadro e com as condicionantes referidas, que se realizou a discussão e votação ritual do Orçamento de Estado para 2022.

Tendo como correta a informação recolhida nas várias intervenções do Sr. primeiro-ministro, a proposta orçamental traduziu, quase integralmente, o modelo orçamental, entretanto chumbado, que foi apresentado no ano anterior.

Sendo assim o verdadeiro responsável pelo Orçamento é o anterior ministro das Finanças, João Leão, que, dessa forma, pode ser considerado o ‘dono da obra’.

Mas se pensarmos que foi o atual ministro das Finanças, Fernando Medina, que protagonizou o debate parlamentar e deu a cara pelas opções políticas, aceitando sem objeção significativa, a lógica das cativações, então afinal o ‘dono da obra’ já é uma personagem diferente.

Por outro lado se considerarmos que o Orçamento foi pensado no último trimestre de 2021 e replicado, depois do chumbo, sem grandes alterações, no primeiro semestre de 2022, tendo entretanto ocorrido uma guerra na Europa que mudou o quadro de referências económicas e sociais, talvez seja conveniente aceitar que, afinal, a obra não tem dono.

É, por isso, que à falta de melhor, e na sequência da bela e comprometida canção do conjunto irlandês U2, (Where the streets have no name), este Orçamento para 2022, é verdadeiramente um Orçamento sem nome. E não é apenas por dificuldade de identificar o dono, mas, sobretudo, pela facilidade em identificar uma grande falta de ambição.

Dir-se-á que nada está comprometido, pois em Outubro haverá mais, mas teria sido mais tranquilizador que, apesar do enorme cenário de incerteza e mesmo de preocupação em que mergulhou a economia mundial, fossem identificadas, desde já, para Portugal, alguns compromissos com uma política reformista.

Isto, claro, sem prejuízo de manter o rigor orçamental e o equilíbrio das contas, a que a disciplina da UE e, sobretudo, a lógica implacável dos mercados, nos obriga.

A discussão parlamentar teve, no entanto, o mérito de trazer para a esfera da opinião pública o debate sobre dois conceitos determinantes para a conceção das políticas económicas e sociais que determinarão o futuro imediato do país: a inflação e a austeridade.

A inflação é um monstro insubmisso que, normalmente, se dá a conhecer por um aumento generalizado dos preços (embora tecnicamente não seja bem isso) e que acaba por condicionar quase todas as medidas de política económica.

Já não devem restar muitas dúvidas sobre o facto de que a inflação é hoje de natureza estrutural, criando um imposto invisível que tornará mais difíceis as previsões económicas para as empresas e diminuirá em muito o rendimento de uma boa parte dos cidadãos.

O dramático da situação é que as medidas imediatas para combater os seus efeitos (funcionamento dos estabilizadores automáticos e/ou aumento de salários) podem tornar-se aceleradores do próprio processo inflacionista.

Isto mesmo foi aceite pelo ministro Fernando Medina que reconheceu, numa declaração tão simples quanto sincera, que a maioria dos portugueses iria perder rendimentos reais e poder de compra.

Habituados a uma negação constante das condições reais da economia portuguesa nos últimos seis anos, essa declaração não pode deixar de surpreender.

Pena foi que, com o balanço libertador adquirido, o titular das finanças não tivesse anunciado que a solução do problema exigiria, para lá de alterações da conjuntura internacional, um aumento muito significativo da produtividade da economia portuguesa e isso só se consegue com alterações profundas do paradigma económico dominante.

Só que o reconhecimento ministerial abriu a porta, misteriosamente fechada, à discussão sobre a política de austeridade.

Se o rendimento real baixa, como o Governo reconhece, declarando-se incapaz de o atenuar pela via da correção salarial, como é possível manter a ficção de que não estamos em austeridade?

Negar, negar sempre, mesmo perante a evidência não parece ser o caminho justo e eficaz para mobilizar a sociedade civil.

Com um Orçamento do Leão, do Medina ou sem progenitor legítimo atribuído, uma certeza fica: os próximos anos serão anos de convívio com a Inflação e a Austeridade.

Quem vai tirar proveito disso? Só o futuro o determinará.