Inteligência artificial. Quando a arte já não precisa dos humanos

Robots que desenham, escrevem, recriam obras famosas, ou inventam outras novas com as técnicas dos grandes pintores. A Inteligência Artificial tem provado que não é preciso ser-se humano para criar arte. Estaremos nós perante o futuro da criação, como defende Leonel Moura?

Se é verdade que há muito que as máquinas e a tecnologia nos vêm substituindo nas mais diversas tarefas, o território das artes e da criatividade permaneceu sempre como um reduto onde o homem detinha a exclusividade. Porém, a tecnologia continua a aumentar a sua capacidade e a forçar os limites – um fenómeno que assusta uns e deslumbra outros. A cada ano que passa, imagens, músicas e textos criados através de inteligência artificial vão apurando a técnica e ganhando espetacularidade.

Significará isso que acabou a busca pelo estilo que torna a poesia de Dante tão singular? Que já não precisamos de Caravaggio? Que Leonardo da Vinci perdeu o seu encanto? Que as categorias tradicionais, como a pintura e a escultura, estão ultrapassadas?

Uma nova forma de arte “Podemos encarar a Inteligência Artificial simplesmente como mais uma ferramenta para produzir arte. Uma espécie de pincel muito sofisticado. A Inteligência Artificial está a dar origem a novas formas de arte, cada vez mais complexas e menos dependentes dos humanos”, considera Leonel Moura, cuja obra, nos finais da década de 1990, passou da fotografia para a inteligência artificial e a arte robótica. Moura, que se define como um artista conceptual, interessa-se precisamente pela “evolução do que chamamos arte”.

“Estamos a caminhar para o reconhecimento de que a arte, ou, pelo menos, a criatividade, não é um exclusivo dos humanos, está presente não só em todos os seres vivos, como também nas máquinas inteligentes”, acredita. Considera que as máquinas criativas e inteligentes geram “novidade”, algo que não está nos algoritmos escritos por humanos. “É a primeira vez que temos máquinas com capacidade para fazerem coisas inesperadas. Hoje, os artistas humanos não criam objetos, criam processos e máquinas que criam os objetos. Hoje, os artistas humanos criam os artistas não-humanos do futuro”, continua, recordando que alguém disse um dia que “se queremos criar verdadeira Inteligência Artificial temos de afastar o humano do processo”.

“Não faz sentido imitar o humano, entre tanta coisa, por dois motivos principais. Desde logo porque não sabemos como funcionamos, somos muito confusos e irracionais, e, mais importante ainda, porque o humano não é um bom exemplo de inteligência e ainda menos de comportamento”, defende. “É isso que eu e outros fazemos no campo da arte. Retirar o mais possível o humano para que uma nova criatividade possa emergir”.

E terão os artistas “convencionais” motivos para se preocupar com este admirável mundo novo? Leonel Moura acredita que não. “Haverá sempre um lugar para a arte convencional, para um ‘artesanato’ sofisticado”, exemplifica. Considera, no entanto, que “a evolução está a ir noutro sentido”. “Na verdade, ainda há quem viva no Neolítico, outros na Idade Média… Pense-se no Afeganistão… Há quem imagine que uma pintura tipo impressionista ou emocional é uma novidade. A revolução do digital está simultaneamente a abrir novas portas e a tornar outras menos relevantes”, argumenta.

Leonel Moura sempre foi alguém “mais interessado nas ideias do que no exercício manual ou retiniano”. “No final do século passado percebi que a chamada arte contemporânea estava esgotada”, recorda. “O digital, a Internet e a Inteligência Artificial mostraram um novo caminho”.

Uma das suas criações, o RAP (Robotic Action Painter), de 2006, é um robot que faz desenhos baseados em emergência e estigmergia (segundo a wikipedia, “método de comunicação indireta no contexto de um sistema emergente auto-organizado onde os diversos componentes, denominados agentes, comunicam e colaboram entre si”) e decide quando a obra está pronta. “O RAP é um robot solitário, mas altamente criativo. Faz tudo sozinho e até assina os seus trabalhos. É, sem dúvida, um dos grandes artistas do nosso tempo”, diz sem falsa modéstia.

Desafiado a nomear a sua criação favorita, refere: “Como tanta vez acontece, no amor e noutras coisas, a primeira”. Em 1998, tomou conhecimento de um novo tipo de algoritmo que gerava, por si, “formas originais a partir de um conjunto de regras simples baseadas no comportamento das formigas”. “Não tinha a ver com arte, mas com ciência, e eu percebi que podia dar origem a desenhos que se faziam a si mesmos. Foi uma revelação!”. Em 2001, ligou um braço robótico a um algoritmo de formigas e, desse sistema, surgiram uma série de pequenos desenhos absolutamente autónomos. “Os meus robots fazem uma arte única. Pode parecer simples riscos aleatórios, mas é mais complexo do que isso. Estes robots criam composições originais, abstratas e imanentes porque essa é a sua natureza”, explica.

A inteligência artificial será o futuro da arte? “Desde há muito, especialmente a partir do Renascimento, que o génio e a invenção humanos têm vindo a consistir num grande questionamento. Desvendar a sua natureza levou ao surgimento e desenvolvimento das ciências e das artes”, afirma Nuno Correia de Brito, Professor de Desafios da Comunicação na Universidade Autónoma e Investigador do ICNOVA. Para o especialista, a capacidade de pensar e de criar é, efetivamente, “uma característica do Humano”: “A criatividade é, se quisermos, um potencial e uma função da mente que permite criar e projetar o que está à nossa volta, ou seja, a cultura”.

Quanto à técnica, define-a como “o resultado da nossa capacidade inventora de intervir no mundo e de transformá-lo”. Assim, a Inteligência Artificial vem, “certamente, retirar o humano de alguns domínios que lhe eram próprios”. “Não se trata jamais de uma ficção, daquelas que o Blade Runner preconizava. Hoje, é já uma realidade. Os sistemas cibernéticos nascem do desenvolvimento da ciência e de modelos da engenharia e são autónomos. A autopoiese – capacidade dos seres vivos de se produzirem a si próprios – de que nos falam Varela e Maturana é cada vez mais uma realidade, não só nos sistemas biológicos e orgânicos, mas nos sistemas tecnológicos”, explica o professor.

“A arte, enquanto expoente máximo da criatividade humana, está a ser substituída por processos computacionais, com recurso à Inteligência Artificial. Hoje, falamos de arte não humana. A pergunta é: será que isto é possível? Se sim, quais os limites das suas possibilidades?”, interroga Nuno de Brito. 

Leonel Moura tem menos dúvidas. Acredita que esse será efetivamente o futuro: “Se os humanos não destruírem o planeta, com guerras e desgaste irreversível do meio ambiente, sim, esse será o futuro! Estamos a esgotar os recursos naturais, a exterminar as espécies não-humanas. Talvez as máquinas consigam fazer melhor. Vamos ver!”.

Uma aplicação singular No mundo da tecnologia digital, as máquinas e o software são cada vez mais capazes de nos surpreender com as suas proezas. É o caso do conhecido Wombo, usado por pessoas de todas as faixas etárias: a partir de um simples retrato, produz um vídeo que nos mostra a cantar a nossa canção favorita.

Esse procedimento é parecido com a aplicação FaceApp, que também fez furor em Portugal no ano passado, e que serve para vermos como seremos daqui a uns anos, ou num género diferente. Outras aplicações, como o Botto ou o Starryai, traduzem em imagens uma breve descrição feita por escrito.

Por exemplo: “Mona Lisa pintada por um menino de dois anos”. E ainda há o GauGAN 2, da empresa de tecnologia de processamento gráfico NVIDIA, que exige algo mais de quem o utiliza: o utilizador deve desenhar um esboço e a máquina tratará de completá-lo.

Este ano, relata o diário madrileno El Confidencial, “houve uma revolução na qualidade pictórica, com a aplicação Dalle-2”, considerada “o melhor gerador de dados” da atualidade. Desenvolvida pela empresa OpenAI, a aplicação já havia investigado o mundo das tarefas realizadas com máquinas que até agora considerávamos competência exclusivamente humana: o seu gerador de texto, o GPT-3, completa o que o escritor deseja escrever.

Mas, nos últimos meses, as redes têm-se enchido de imagens de utilizadores que competem para ver qual deles impressiona mais o público, a partir daquilo que criaram na aplicação. Uma batata com capa de super herói e óculos de pin-up? Uma reinterpretação do famoso quadro A rapariga com o brinco de pérola, do artista holandês do século XVII Johannes Vermeer? Uma cadeira de abacate? Ursinhos de peluche a misturarem produtos químicos como se fossem dois cientistas malucos? As possibilidades artísticas são infinitas. Os utilizadores podem obter designs que respondam às suas ideias escrevendo-as, mas também editando imagens existentes.

A terceira característica desta ferramenta de inteligência artificial é a criação de novos designs que reinterpretam os já existentes, podendo alterar parâmetros como ângulos e perspetivas, entre outros. No Dalle-2 é possível não só brincar com as nossas imagens, como também recriar variações de pinturas famosas através de filtros que aplicam o estilo do autor escolhido. A aplicação tornou-se tão popular que, como um clube de acesso restrito, possui uma longa lista de espera e um questionário para determinador se o utilizador é “digno” de ser aceite.