Cães e homens

Como sabem todos os que têm ou tiveram cães, a entrada de um cão numa casa, levantando alguns problemas, é uma bênção. Os cães dão-nos mais do que lhes damos a eles.

Em casa dos meus pais nunca houve cães. Houve um gato preto que eu adotei (no quintal das traseiras existiam dezenas de gatos vadios) e ao qual chamei Matateu (o nome de um jogador de futebol negro do Belenenses, clube que o meu avô ajudou a fundar).

Depois de me casar, nunca se pôs a hipótese de termos um cão. Até um belo dia do ano de 1996, quando me telefonaram para o jornal a dizer que o meu filho mais velho, Francisco, tinha levado um cão para casa. Um cachorro com três meses.

O caso é que, depois de uma noite de boémia, já de madrugada, viu um vagabundo com vários cachorros para vender – e comprou um por 5 contos.

Quando cheguei a casa, o bicho estava fechado na cozinha. Era um rafeiro tigrado, castanho e preto. Aproximei-me mas logo recuei, porque o animal era uma pequena fera. Estava em estado selvagem.

Os primeiros tempos foram terríveis. O cão – a que o meu filho deu o nome de Paco (Francisco em espanhol) – ficou fechado na cozinha (que era aberta para uma ampla marquise), para não sujar a casa toda. Mas, como era muito irrequieto, arrastava no chão os objetos que podia – provocando a ira dos vizinhos, sobretudo o casal do lado, que chegou a bater-nos à porta a altas horas da noite. O problema é que a senhora (uma dinamarquesa casada com um português) tinha de se levantar de manhã muito cedo – e, segundo diziam, o barulho feito pelo cão não a deixava dormir.

Mudámos então o bicho para um quarto situado no lado oposto da casa, amarrado com uma trela comprida a um sofá. Só que, ao fim de pouco tempo, o sofá estava completamente destruído: o Paco roeu-o todo, desde as almofadas à própria estrutura.

Entretanto, já tinha crescido um pouco, já ia à rua fazer as necessidades, e começámos a deixá-lo andar livremente pela casa. Mas aí surgiu outro problema: não gostava de estar sozinho e ladrava imenso quando saíamos. E aí foi o vizinho de cima a vir queixar-se: a mulher era doente, passava o dia em casa, e não podia descansar com o cão a ladrar. No seu desespero, o homem chegou a pontapear a nossa porta com a intenção de a arrombar.

Indicaram-me então uma loja em Cascais onde vendiam um aparelho chamado ‘Cala cão’ que, quando os cães ladram, emite uns ultrassons impercetíveis pelos ouvidos humanos mas incómodos para os cães, levando-os a calar-se. A coisa resultou e o vizinho deixou de se queixar.

O Paco cresceu, tornou-se adulto, ia connosco para o todo o lado, ficava na bagageira da carrinha pacientemente à espera quando íamos a qualquer sítio onde não o podíamos levar. Mas adorava sobretudo a liberdade: correr no campo aos fins de semana no Alentejo.

 Dediquei-lhe um livro – O Cão Que Pensava Demais – com as seguintes palavras:

Ao Paco

Que inspirou uma das personagens principais deste livro

Que me acompanhou silenciosamente em intermináveis serões a escrevê-lo

E que ainda por cima nunca o poderá ler.

Viveu 17 anos. Julgo que teve uma vida feliz. Adormeceu para sempre nos meus braços com uma injeção dada pelo veterinário quando deixou de comer e já não conseguia levantar-se.

Depois disso, a minha mulher decidiu não termos mais nenhum cão. Assim se passaram cinco anos. Em 2018 o meu filho Francisco – que é diplomata – foi colocado no estrangeiro, após uns anos em Lisboa, e deixou-nos a guardar… a sua cadela Laika. E é claro que ao fim de pouco tempo a adotámos, e fizemos pressão para ficar com ela.

A Laika é muito parecida com o Paco: também rafeira, preta e castanha, embora não tigrada. Tem o dorso negro e a barriga castanha.

Com a Laika revivemos muito do que tínhamos vivido com o Paco, embora não haja dois cães iguais. E como veio para nossa casa já com 5 anos, não nos roeu os móveis.

Como sabem todos os que têm ou tiveram cães, a entrada de um cão numa casa, levantando alguns problemas, é uma bênção. Os cães dão-nos mais do que lhes damos a eles. A sua ingenuidade comove-nos. Amam-nos incondicionalmente mesmo quando os ignoramos. Fazem-nos companhia sem pedirem nada em troca. Mostram-nos até que ponto pode estabelecer-se uma relação forte entre dois seres que não trocam palavras entre si.

Não direi que a sua dedicação é inteiramente desinteressada, pois sabe que somos nós que lhe damos de comer e beber. Mas além disso não pede nada.

Nestas circunstâncias, todos os dias há mais gente com cães em casa. E adora-os. Na Ucrânia, vemos os refugiados levarem os seus cães na fuga. Nas cheias, nos incêndios, vemos as pessoas preocupadas em salvar os seus cães. Mas esta amizade forte que se estabelece entre os homens e os cães (ou os gatos, embora com estes a relação seja diferente), sendo muito genuína e saudável, tem um lado perverso.

É que, cada vez mais, vemos os cães a substituir as pessoas.

Há cada vez mais separações, mais divórcios, mais pessoas a viver sozinhas – e os companheiros, homens ou mulheres, são substituídos por… cães.

Há cada vez mais mulheres que não querem ter filhos – e os substituem por… cães. Neles depositam os seus afetos, para eles canalizam os seus sentimentos maternais, as preocupações com o cão substituem as preocupações com os filhos – com algumas vantagens, como não as acordarem a meio da noite.

De dia para dia estas situações são mais correntes. Progressivamente, os cães ocupam o lugar das pessoas.

Num tempo em que as relações humanas se deterioram, em que as famílias se desagregam, em que as novas tecnologias isolam os seres humanos e os afastam uns dos outros, é muito preocupante constatar que a adoção de animais de companhia está a acelerar este fenómeno.

A pouco e pouco as mulheres vão deixando de ter filhos, as mulheres e os homens vão deixando de ter companheiros, os seres humanos vão deixando de conviver – contentando-se em adotar um animal de companhia.

E convenhamos que, para os próprios cães, ter de viver só com uma pessoa também deve ser muito monótono.