Índia. No oco dos tempos

Quem presta pouca atenção, diria que, por aqui só o cricket importa. Mas foram fundados na Índia alguns dos clubes de futebol mais antigos do mundo.

MARGÃO – É um futebol que tem vivido no oco dos tempos, o futebol que, por aqui, tem de abrir as fileiras da popularidade ao cricket. Mas não deixa de ser antigo, muito antigo, como tudo o que é indiano, vendo bem. Nagendra Prasad Sarbadhikary Harida pode não passar, para a maioria dos leitores, de um nome comprido que provoca cãibras na língua só com a tentativa de pronunciá-lo. Professor na Hare School de Calcutá, reunia os alunos e levava-os a ver jogos entre grupos de militares ingleses instalados na região. Era de tal forma entusiasmado pelo desporto que conseguiu contagiar os colegas e desencadear lições de aprendizagem das regras, seguidas, está claro, pela prática de uma refregas liceais. Foi responsável pelo aparecimento dos primeiros clubes de futebol indianos, na década de 1880, o que faz do The Boy’s Club ou do Wellington Club (ambos de 1884) dos clubes mais antigos do mundo. Foi precisamente no Wellington que Nagendra Prasad teve de enfrentar um dos problemas que afetaram a consolidação e o desenvolvimento destas organizações desportivas. Quando quis trazer o grande jogador indiano da época, Moni Das, para o clube, houve uma revolta geral: nenhum dos jogadores que lá estavam se mostraram disposto a partilhar o campo e as cabinas com um membro de uma casta inferior. Prasad encolheu os ombros. Abandonou o Wellington e fundou um clube mais democrático – o Sovabazar Club – que não tardaria a receber 500 sócios solidários com a batalha de Das e fizeram dele o maior clube da Índia do seu tempo.

Entretanto, enquanto a questão das castas entrava à bruta pelo futebol dentro, um inglês, Mortimer Durand, que ocupava o cargo de Secretário dos Negócios Estrangeiros, teve a ideia brilhante de fazer disputar, em Shimla, no norte do país, junto aos Himalaias, uma competição envolvendo as equipas de diversos regimentos do Exército Britânico. A prova deveria realizar-se anualmente e levou o nome do seu ideólogo:Durand Cup. A primeira edição data de 1888, ou seja, o troféu mais antigo ainda em curso após a Taça de Inglaterra e a Taça da Escócia. Os jogos não foram em Shimla por acaso, já que Mortimer estava na zona a tratar-se de uma forte infeção nos pulmões: nada que o impedisse, no entanto, de entregar a taça ao capitão dos vencedores, os Reais Fuzileiros Escoceses que bateram na final, por 2-1, a Cavalaria Ligeira Inglesa.

O Mohun Bagan
Ainda se discute, em Calcutá, West Bengal (único Estado da Índia que, além de Goa, tem futebol espalhado por todo o território) qual o mais antigo de todos os clubes indianos: tanto o Sarada FC como o Calcutta FC têm, por ano de nascimento, 1872. Já quanto à data certa da fundação, as memórias dispersam-se, o que é natural, mesmo que os indianos sejam absolutamente fanáticos por burocracia e papelada, algo compreensível quando se imagina o que é encontrar trabalho para uma população que ultrapassa mil milhões e trezentos mil habitantes. Muitos deles estão fechados em gabinetes estatais a fazerem cópias e mais cópias de documentos e carimbando tudo o que lhes vem parar às mãos.

Apesar do simbolismo da antiguidade de Saraba e Calcutta, o primeiro grande clube a surgir na Índia foi o Mohun Bagan Sporting Club (hoje em dia Athletic Club). Foi fundado num grande casarão do bairro de Shyambazar, um bairro da zona norte de Calcutá, na Fariapokur Lane, chamado precisamente Hohun Bagan Villa, por três dos chefes das famílias mais ricas da cidade: os Mitra, os Basu e os Sen. No dia 15 de Agosto de 1889, Bhupendra Nath Basu, um abastado negociante de juta, tornou-se no primeiro presidente do Mohun, muito provavelmente o único clube cujo equipamento principal era castanho – há uma velha teoria britânica que o castanho era uma cor proibidas para equipar jogadores de futebol ou de râguebi porque poderia levar à confusão com as camisolas contrárias que estivessem sujas de lama. Como gente fina é outra coisa, as fardas do Mohun vinham de Londres, da famosa alfaiataria Messrs Rankin, instalada na Old Couse House Street.

Sob as instruções do secretário-geral do clube, Sailen Basu, todo o trabalho feito nos treinos tinha uma componente essencialmente física. Porque a habilidade dos seus jogadores poderia servir para bater equipas universitárias mas nada podia fazer contra as equipas militares. A contratação do grande Sudhir Chatterjee também provocou sensação: afinal era o único jogador indiano que não entrava em campo descalço, antes exibindo umas vistosas chuteiras.
O ano de 1911 seria o mais glorioso da história do Mohun Bagan. Participando na IFA (Indian Football Association) Shield, contra equipas totalmente formadas por ingleses, como o St. Xavier’s College, o Calcutta Rangers Club, a Rifle Brigade e o Middlesex Regiment, atingiram a final sem sofrerem um único golo.

O povo manifestou-se. O Mohun representava toda a Índia contra a potência colonizadora personalizada no outro finalista, o East Yorkshire Regiment: Veio gente dos Estados vizinhos, de Bihar e de Assam. A Indian Railways criou linhas especiais para os interessados em assistir ao encontro, mais de 80 mil pessoas invadiram os Cacutta Football Grounds. O Mohun começou cedo a perder mas ganhou a dois minutos do fim – 2-1. A imprensa inglesa fez uma vénia: «The Mohun Bagan, consisting purely of Bengalees, has won the Indian Football Association Shield beating crack teams of English regiments». O Brittish Raj não era imbatível.