Maquiavel e o principezinho

O Príncipe fala de ambição, poder e pragmatismo. O Principezinho faz a apologia da inocência, da infância e do sonho.

A  vida em Cabo Juby, na costa de Marrocos, para onde Antoine de Saint-Exupéry fora destacado em 1927, como funcionário de uma empresa de correio aéreo, era de uma monotonia quase insuportável. As condições, naturalmente, não primavam pelo requinte e havia muito pouco para fazer. O escritor e aviador teve de encontrar uma distração para matar o tempo. Desterrado, encontrou consolo nos animais, cuja inocência o comovia.

«O mais bizarro de tudo era a pequena coleção de animais de estimação, um pouco repugnantes à primeira vista, que enchiam a cabana», escreve Paul Webster na biografia Antoine de Saint-Exupéry – Vida e Morte do principezinho (ed. Vogais). «Uma hiena teve de ficar presa no exterior porque o cheiro era insuportável, mas o espaço reduzido que servia de messe para os pilotos era parcialmente ocupado por um macaco meio louco chamado Kiki, que comia lâminas de barbear, uma cadela rafeira de nome Mirra de uma gula incorrigível e que não parava de ladrar, e um enorme gato, Paf, que andava em constante guerra com o macaco». Mais importante ainda foi o encontro com uma pequena raposa do deserto, de orelhas amplas e arrebitadas. Como ele próprio contaria, tentaram domesticar-se mutuamente.

Foi alguns anos mais tarde, deitado na cama de uma enfermaria de um hospital de Los Angeles, que Saint-Exupéry teve a ideia da famosa história em que aparece a raposa. Tudo começa com um aviador que se despenha no deserto e encontra um menino que lhe fala do asteroide onde vive, dos mundos por onde viajou e das personagens que conheceu.
Este menino de cachecol esvoaçante ao pescoço é, evidentemente, o principezinho.

Talvez se trate de um mero acaso que Saint-Exupéry tenha escolhido para o seu livro um título tão parecido com o de outro clássico, escrito mais ou menos 400 anos antes: O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (redigido em 1413, publicado postumamente em 1432).

Em quase tudo são opostos. O Principezinho faz a apologia da infância, do amor e do sonho. O Príncipe fala de ambição, poder e pragmatismo. Saint-Exupéry tornou-se sinónimo de ingenuidade e pureza de sentimentos; Maquiavel de cinismo, manipulação e falta de escrúpulos. Um é um conto de fadas moderno; o outro um tratado político acerca de como conservar o poder através da ação conjugada da artimanha e da força.

«Vale mais ser temido do que amado», defende Maquiavel.

«Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos…», contrapõe a raposa d’O Principezinho.
Diz-se que Saint-Exupéry era um aviador distraído. Um pouco cabeça-no-ar. E pode ter sido esse traço que ditou o seu desaparecimento a 31 de julho de 1944, numa missão de reconhecimento fotográfico no Sul de França, cerca de um ano depois da publicação do seu famoso livro. Tinha visto o mundo lá de cima e conhecido o vazio do deserto. Ao contrário de Maquiavel, tinha uma medida da pequenez dos negócios humanos e sabia que não valia a pena apoquentarmo-nos por tão pouco.

Música, só música
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«Quando escuto a música de Mahler, deparo-me com paisagens que me deixam maravilhado». Melómano confesso, Murakami tem  há muito por hábito semear referências musicais (eruditas ou não) nos seus romances. Mas aqui falamos de algo completamente diferente: só música. O escritor encontra no maestro Seiji Ozawa o interlocutor ideal para discutir o som de um certo maestro ou as especificidades de um certo compositor. Ozawa, por sua vez, recorda a sua experiência com gigantes do ofício, verdadeiros mitos como Leonard Bernstein, de quem foi assistente, Herbert von Karajan ou Carlos Kleiber. E até revela como certa vez roubou três batutas da gaveta da secretária de Eugene Ormandy… e foi apanhado. Uma conversa com subtilezas que escapam ao não especialista, mas sempre viva e cativante. E uma porta de entrada privilegiada para a música e os seus segredos. Com prefácio de Martim Sousa Tavares.

A defesa intransigente da arte – Transcrição de um julgamento sórdido
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Guerra e Paz
«C – Por que razão um homem da sua idade se dirige a
um jovem quase vinte anos mais novo como ‘Meu querido menino’?
W – Eu gostava dele. Sempre lhe tive amizade.
C – Adora-o?
W – Não, mas sempre gostei dele. Acho que é uma linda carta. É um poema. Não era uma carta banal, a que eu escrevi. É como se o senhor resolvesse interrogar-me neste tribunal para saber se o Rei Lear e os sonetos de Shakespeare são ou não indecorosos.
C – E pondo de lado a arte, Sr. Wilde?
W – Não sei responder pondo de lado a arte.
C – Suponhamos que a carta foi escrita por um homem
que não era artista. Achá-la-ia uma carta indecorosa?
W – Um homem que não fosse artista nunca poderia escrever uma carta daquelas».
Numa acusação que em vários momentos se parece com um processo do Santo Ofício, Oscar Wilde, suspeito de homossexualidade, responde com a sua verve insuperável. Um documento sensacional.