Obrigatório, permitido, proibido

Creio que, nos dias que correm, se poderá acrescentar que, em regra, nos regimes democráticos, tudo o que não é proibido é permitido. Já em regimes autoritários, dir-se-á que tudo o que não é permitido é proibido, sendo que, em casos extremos de totalitarismo, tudo o que não é proibido é mesmo obrigatório. 

Há uma notável síntese, atribuída a Winston Churchill, por ocasião da II Grande Guerra, que aqui transcrevo: «Na Inglaterra, tudo é permitido, excepto o que é proibido. Na Alemanha, tudo é proibido, excepto o que é permitido. Em França, tudo é permitido, mesmo o que é proibido. Na União Soviética, tudo é proibido, mesmo o que é permitido». 

Creio que, nos dias que correm, se poderá acrescentar que, em regra, nos regimes democráticos, tudo o que não é proibido é permitido. Já em regimes autoritários, dir-se-á que tudo o que não é permitido é proibido, sendo que, em casos extremos de totalitarismo, tudo o que não é proibido é mesmo obrigatório. 

Neste enquadramento simplista ou até caricatural, como definir Portugal? Pela minha parte, tenderia a escolher, do ponto de vista sociológico, a parte da síntese do estadista britânico de que (quase) tudo é permitido, mesmo o que é proibido. Com uma diferença, aliás muito latina: o de não se saber, com precisão, o que se entende por permitido ou proibido, como, prodigamente, podemos constatar no nosso quotidiano comum. Ou seja, falando da fronteira (legal) entre obrigação, permissão e proibição, nem sempre ela é ‘definível’ e tende a ser objecto de discussão, de crescente relativismo, de adequação particularista, ou mesmo de discricionariedade estatal. A isto acresce que, no plano ético da legitimidade – que nem sempre coincide com o plano jurídico – há três graus – o exigido, o permitido e o interdito – tornando o quadro geral ainda mais cheio de buracos e sobreposições.

Semanticamente bem diferenciados, todos estes termos são sujeitos a sevícias de interpretação de conveniência, que geram erosão do seu significado e criam ‘terras de ninguém’, por onde, em geral, passam arbitrariedades, abusos e malfeitorias. 

O antónimo de proibido é permitido, mas também tolerado, consentido ou autorizado. O contrário de permitido é proibido, como também bloqueado, obstruído ou negado. Já o oposto de obrigatório é facultativo, optativo, desnecessário. Por aqui podemos imaginar a ‘pale te’ de nuances entre o ser, o ser quase, o ser pouco e o não ser qualquer destes atributos.

Vem isto a propósito do fim da obrigatoriedade do uso de máscara, apercebido pela generalidade das pessoas como uma ‘ordem automática’. Compreende-se, perante o cansaço prolongado. Mas daí a ser o ‘dia da libertação’ e o fim de um grande ‘sacrifício’ vai uma grande diferença. 

Eu, que continuo a usar a máscara por decisão pessoal, sinto-me, cada vez mais, como pertencendo a uma minoria quase considerada estranha. Mas não entro na discussão de opinar sobre se a maior incidência de covid está ou não relacionada com tal decisão legal. Isso é campo para quem sabe, o que, obviamente, não é o meu caso.

Na sociedade contemporânea, acentuadamente hedonista, qualquer coisinha imposta, pode ser considerada um ‘enorme sacrifício’. Foi o que ouvi nas televisões, com gente a suspirar de desafogo por poder dispensar o tal adereço. Um ‘alívio’ no meio de tantas reportagens, lá na Ucrânia, que noticiam as condições trágicas e inumanas de pessoas que resistem a uma guerra, que lhes caiu em cima. Enfim…

Cada vez mais, os comportamentos se reportam à lei (para cumpri-la ou não). De tal modo que, no subconsciente de muita gente, está impregnada a ideia de que só a lei nos obriga. Ou seja, a nossa responsabilidade – enquanto a capacidade de responder pelas nossas decisões e actos, individual e colectivamente – começa e termina aí. No caso da máscara, pensar-se-á: se já não é obrigatória, já não a uso, ponto final. Nada a opor, evidentemente. Todavia, uma coisa é não ser obrigatório (por lei), outra é auto dispensarmo-nos de avaliar livremente a nossa responsabilidade, para então decidirmos pelo seu uso ou dispensa.

 

As nossa atitudes não se estruturam tão-só na dicotomia legal/ilegal ou lícito/ilícito. Há matérias que a lei não impõe nem regula, mas que importa serem consideradas no plano pessoal e relacional. A pessoa, na vertente ética que lhe é inerente, tem mais responsabilidades do que o cidadão titular de direitos e deveres legais. Esta estrita e redutora associação com a norma jurídica impositiva é uma forma de nos limitarmos, de nos desvalorizarmos face à obrigação que advém da nossa consciência e da motivação interior, e que, enquanto tal, pressupõe uma adesão livre e isenta de qualquer coacção legal. É tudo menos um incitamento a pensar por si, é tudo menos o reforço da responsabilidade como estádio superior da liberdade. Tendemos, pois, para um reflexo condicionado e empobrecedor do tipo ‘a lei obriga, lá tem de ser; a lei já não obriga, nem penso duas vezes’. 

Veio-me à memória uma pequena ilustração que, quase premonitoriamente, guardei de uma revista francesa dos anos 70 do século passado. Um homem feliz, na rua, a oferecer balões à criançada que por ele passava. Tudo normal, tudo numa boa, até que o stock quase se esgotou e o nosso homem ficou apenas com um último balão na mão. Aí, tudo se alterou: o generoso velhote passou a ser insolitamente olhado como um ‘pobre coitado’ a fazer uma triste figura e a ser alvo de chacota dos adultos e da perplexidade da autoridade policial. Até as crianças não se atreveram a pedir o balão remanescente… Uma significativa alegoria ilustrada, que se arrisca a caracterizar quem teima em usar a máscara por livre decisão pessoal! 

Também me lembro desta ‘estória’ dos balões quando, pacientemente, espero pelo sinal verde para atravessar uma passadeira. Por vezes, sinto-me olhado como um ser estranho e – confesso – sem carros à vista, dou por mim a passar, para ‘não fazer papel de parvo”. 

Em suma: andamos a correr na vida guiados por um ‘relógio público’, como que delegando automática e integralmente o nosso dever de responsabilidade na lei geral e abstracta. E, não raro, esquecemo-nos de nos orientar pela nossa ‘bússola pessoal’, que nos deve ajudar a encontrar caminhos, não por mera imposição legislativa ou determinismo mimético, mas por exigência própria. O campo da ética é, em relação ao do direito, não apenas mais vasto, como também mais exigente.

Continuo a usar a máscara, não me limitando a seguir mecanicamente a determinação da sua não obrigatoriedade. Por respeito por mim e pelos outros. Mas compreendo quem, fazendo uma avaliação pessoal, entenda o contrário. Desde que não me identifiquem como o ‘senhor do balão’…