Ucrânia começa a punir crimes russos e a “memorializar” os seus heróis

Enquanto se combate nas trincheiras em Donbass, um jovem militar russo já foi condenado a prisão perpétua por crimes de guerra. E até se abriu uma exposição com artefactos da invasão em Kiev.

Ucrânia começa a punir crimes russos e a “memorializar” os seus heróis

Em Kiev, bem distante da linha da frente em Donbass, já se tenta lidar com o legado da invasão russa. Volodymyr Zelensky pediu auxílio para um programa internacional para reconstrução do seu país (página 4), enquanto um sargento russo de se tornava o primeiro militar condenado por crimes de guerra na capital ucraniana, onde até se construíu um museu ao conflito. No entanto, a guerra parece longe de estar ganha pelos ucranianos, havendo grandes dúvidas que tão cedo tenham capacidade de expulsar as forçar do Kremlin do território que conquistaram. E toda a dor que deixaram para trás será difícil, senão impossível, de esquecer. 

“Diz-me por favor, porque é que vocês vieram para cá?”, questionou Kateryna Shelipova, viúva de Oleksandr Shelipov, de 62 anos, assassinado perto de sua casa, logo no primeiro dia da invasão ordenada por Vladimir Putin. “Para proteger-nos de quem?”. Protegeram-me do meu marido, que mataram?”, continuou Shelipova, dirigindo-se a Vadim Shishimarin, o comandante de um tanque russo, que acabaria capturado, confessando a sua culpa num banco dos réus em Kiev. O julgamento deste sargento deverá ser o primeiro de muitos, tendo a Ucrânia registado mais de 10 mil crimes de guerra durante a invasão.

Segundo a sua admissão, apoiada pelo testemunho de um dos seus camaradas, um pequeno grupo de tropas russas, onde se incluía Shishimarin, deu por si separado do resto da sua unidade, após confrontos com forças ucranianas. Roubaram um carro e deparam-se com Shelipov à beira da estrada, de bicicleta, tentando perceber os estragos causados pelos bombardeamentos na sua aldeia, Chupakhivka, a sul de Sumy, enquanto falava ao telemóvel. O tenente russo contou ter recebido ordens de um superior para o abater, não fosse denunciar a sua posição às forças ucranianas. O jovem ainda terá recusado, mas acedeu sob pressão do oficial.

“Ele disse que eu estaria a colocar-nos a todos em perigo se não o fizesse. Disparei sobre ele à queima-roupa. Matei-o”, confessou Shishimarin. Foi aí que apareceu Shelipova, cruzando-se com o assassino do seu marido ainda com a uma kalashnikov na mão. “Comecei a gritar muito alto”, relatou Shelipova. “Vi o meu marido deitado ali. Corri para ele, mas já estava morto, tinha sido baleado na cabeça. 

“Compreendo que provavelmente não conseguirá perdoar-me, mas peço desculpa” , implorou Shishimarin, enquanto a viúva da sua vítima chorava no tribunal. Este jovem, oriundo do oblast – uma unidade administrativa equivalente aos nossos distritos – de Irkutsk, muito próximo da Mongólia, segundo o Kyiv Independent, ainda contou ter visto os seu camaradas disparar contra um carro civil, um Volkswagen, quando tentavam retirar para a Rússia.

Agora, Shishimarin parece ter sido abandonado pelas mesmas forças armadas que o levaram para a Ucrânia. Mesmo quando foi condenado a prisão perpétua, não foi sequer contactado por nenhuma entidade oficial russa, relatou o seu advogado de defesa, providenciado pelo Estado ucraniano, à BBC. Ainda não é claro se o jovem tenente, que decidira juntar-se ao exército devido à falta de oportunidades na sua terra natal, contou a sua mãe ao site Meduza, cumprirá a sua pena de prisão perpétua na Ucrânia. “Se ele for trocado pelos nossos defensores de Azovstal, não me importo”, concedeu a viúva da sua vítima, em pleno tribunal. 

O museu de uma guerra em curso Em Kiev, após o receio vivido nas primeiras semanas da invasão, com forças russas às portas da capital, a vida quase que voltou ao normal. São memórias que ainda estão bem frescas, mas já começam a ser preservadas no museu de história militar da Ucrânia, cheio de destroços de veículos russos, armas capturadas e reconstituições dos bunkers onde os ucranianos conseguiram travar o avanço do Kremlin. 

“Muitos soldados tinham estado aqui antes em escursões, portanto sabiam onde trazer as coisas que encontravam”, explicou Oleksandr Shemelyak, um dos investigadores do museu, muito próximo das instalações de onde Zelensky tem comandado as suas tropas. “Recebemos novos itens para expor a toda a hora”, assegurou Shemelyak ao Guardian. A exposição, em paralelo com os esforços ucranianos para mostrar ao mundo a brutalidade da invasão russa, através de julgamentos como o do jovem Shishimarin, já começa a receber visitantes.

“É um projeto que mostra o que acontece quando as liçoões da história não são aprendidas”, acrescentou outro responsável deste museu, Dmytro Hainetdinov. Tudo indica que não lhe faltará artefactos com que trabalhar, ou mártires a celebrar, com os ucranianos a perderem entre cinquenta a cem tropas por dia no Donbass, admitiu Zelensky, esta segunda-feira, dando pela primeira vez ideia da escala das baixas sofridas pelos militares da Ucrânia. Ao mesmo tempo que os russos aumentam os seus bombardeamentos contra Severodonetsk, a maior cidade sob controlo ucraniano em Lugansk.

O problema do Kremlin é que, mesmo após abandonar as suas ambiciosas tentativas de tomar de assalto Kiev e Kharkiv, tem avançado muito lentamente no Donbass, mostrando-se incapaz de quebrar as linhas de abastecimento ucranianas na região. E o relógio está a contar para o Kremlin, à medida que Kiev tenta que a artilharia vinda da NATO chegue à linha da frente.