Metadados, crime & poder

Está de parabéns a Provedora de Justiça, que suscitou a inconstitucionalidade da lei. Está também de parabéns o Tribunal Constitucional pela corajosa decisão, a qual maximizou, como deve ser, a proteção dos direitos de todos os cidadãos, principalmente os arguidos em processo criminal. 

por Nuno Cerejeira Namora
Sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão & Associados e Advogado Especialista em Direito do Trabalho

Desde 2001 que Manuel Castells, proeminente sociólogo espanhol, ensina que o «poder é exercido antes de tudo em torno da produção e difusão de nós culturais e conteúdos de informação. O controlo sobre as redes de comunicação torna-se a alavanca através da qual interesses e valores são transformados em normas condutoras do comportamento humano», depois acrescentando que «a soberania do Estado sempre começou com o controlo da informação» (A Galáxia da Internet – Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade). Assim se confirma, no essencial, a velha fórmula de que informação é poder.

Não é, pois, de estranhar o terramoto político-jurídico causado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que veio declarar inconstitucional uma série de normas da lei que, desde 2008, permitia a conservação indiscriminada por um ano de um conjunto latíssimo de dados relacionados com as comunicações de todos os cidadãos (metadados). Trata-se, é certo, de um sismo que vem sendo seguido de várias réplicas, desde o pedido da Procuradora-Geral da República para que o TC declarasse a nulidade do Acórdão que havia acabado de prolatar, às iniciativas legislativas que estão a ser apresentadas no Parlamento, às indicações do Gabinete de Cibercrime da Procuradoria-Geral da República para que se aplique uma outra lei que permite a conservação e o acesso a um conjunto mais restrito de metadados. E o que ainda aí virá. 

Apesar de sáfaro, este tema não tem nada de meta, sendo, na verdade, a replicação de velhas celeumas que apenas se transmutam e complexificam na Era Digital. 

O aparelho estatal, enquanto máximo sistema de controlo social, em nome da eficácia da investigação criminal, ou prosseguindo outros interesses legítimos em sociedades democráticas, sempre se viu tentado a imiscuir-se na vida privada dos cidadãos, procurando controlar, com maior ou menor latitude, os seus movimentos e as suas comunicações. 

Se nas sociedades não democráticas esse controlo é absurdamente intenso, nas sociedades liberais ele tem de passar o teste da proporcionalidade, sob a forma da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, limites esses que vinham sendo violados pelo menos desde 2008 no que toca aos metadados. 

Esta história deve causar sobressalto cívico e jurídico. Porém, e como consequência de uma crescente datificação das sociedades, que dá origem, como já alguém escreveu, a uma nova era de capitalismo de vigilância, em que estar no mundo significa estar em rede, assiste-se a uma espécie de efeito conformista, por via do qual se aceitam crescentes intrusões nas esferas de reserva da intimidade da vida privada enquanto trade-off do conforto que a digitalização proporciona. 

Ora, o poder, onde quer que ele se encontre, tira naturalmente proveito desse percecionado conformismo para, passo a passo, alargar os seus tentáculos e recolher cada vez mais informação sobre cada um de nós. Contra essa tentação, só um ativismo cívico e jurídico pode ser solução! 

E só por isso está de parabéns a Provedora de Justiça, que suscitou a inconstitucionalidade da lei. Está também de parabéns o Tribunal Constitucional pela corajosa decisão, a qual maximizou, como deve ser, a proteção dos direitos de todos os cidadãos, principalmente os arguidos em processo criminal. 

Do lado da censura, merece-a o legislador, aqui personificado pela Assembleia da República, e as próprias magistraturas. Ambos sabiam há muito (pelo menos desde 2014, com a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia de invalidar a Diretiva que está na base da lei portuguesa) que o nosso regime não respeitava os parâmetros da União Europeia em termos de proteção dos direitos fundamentais: os deputados escolheram não revogar nem alterar a lei; os magistrados decidiram continuar a aplicá-la. 

Como efeito colateral desta decisão do TC, que não podia ter sido outra, ficam a ganhar a democracia e os direitos fundamentais de todos nós, mais bem protegidos contra ingerências do poder e até contra intrusões maliciosas de terceiros nos dados que tanto revelam sobre nós e sobre a nossa vida. 

Note-se: defender esta posição não é o mesmo que defender uma limitação gritante da eficácia da perseguição criminal. A conservação e o acesso aos metadados devem ser possíveis, desde que de forma tão restrita e específica que se respeitem as liberdades individuais de todos e cada um. Ao contrário de uma certa retórica hodierna, nem tudo se pode justificar e admitir no combate ao crime. A linha de fronteira passa (também) por não patrocinarmos e incentivarmos um sistema de conservação de dados que se assemelha a um programa de vigilância em massas. Para isso já nos bastam as plataformas digitais.