“Os números da obesidade têm melhorado nos últimos dez anos, mas há muito a fazer”

Cerca de dois terços dos adultos e uma em cada três crianças em idade escolar vivem com excesso de peso ou obesidade, na União Europeia. Como se pode alterar este panorama?

Jason Halford, professor universitário de Psicologia, e Mafalda Marcelino, médica endocrinologista, apresentam medidas e apelam à sociedade para que não estigmatize as pessoas com obesidade.

Aproximadamente dois terços dos adultos e uma em cada três crianças em idade escolar, da União Europeia (UE), vivem com excesso de peso ou obesidade. Os números foram apurados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e veiculados através do Relatório da Obesidade da Região Europeia da OMS, divulgado no início de maio. Em Portugal, estes valores são igualmente alarmantes: 57,5% (63,1% dos homens e 52% das mulheres) dos adultos têm peso a mais. Destes, 20,8% vivem com obesidade (20,3% dos homens e 21,2% das mulheres). Relativamente aos mais novos, cerca de uma em cada três crianças tem excesso de peso e mais de 10% delas vivem mesmo com obesidade.

“As pessoas que vivem com obesidade, muitas das vezes, apresentam défices no equilíbrio energético e na regulação do apetite, o que dificulta o controlo do comportamento alimentar. O consumo de alimentos não ‘desliga’ os sinais de fome da maneira que deveria. Isso faz com que as pessoas que vivem com obesidade sintam que a comida está a controlá-las e não o contrário. Fatores psicológicos como o stress e a depressão também contribuem, prejudicando as tentativas de controlar o comportamento alimentar”, começa por explicar Jason Halford, líder da Escola de Psicologia da Universidade de Leeds, no Reino Unido, assim como presidente da Associação Europeia para o Estudo da Obesidade, clarificando que o termo “pessoas obesas” é estigmatizante e, deste modo, deve utilizar-se “pessoas com obesidade” ou “pessoas que têm obesidade”.

“Muitas das vezes, quando analisamos o histórico de peso de um indivíduo, vemos que os eventos da vida – alguns deles traumáticos – preveem períodos de rápido ganho de peso. Existe uma relação bidirecional entre o ganho de peso e a doença mental, particularmente depressão, que pode remontar à infância”, esclarece, em declarações ao i, o docente universitário e investigador, avançando que os fatores psicológicos, “tanto antes como durante as intervenções de controlo de peso, afetam os resultados em termos de perda de peso inicial e subsequente recuperação de peso”.

Por este motivo, “é importante tratar os problemas psicológicos desde o início”. Todavia, “o acesso a serviços especializados com apoio psicológico é limitado. Além disso, há uma escassez de psicólogos e outros especialistas em saúde mental per se, particularmente aqueles com experiência em questões relacionadas à obesidade”, adianta o profissional para quem “a estigmatização da obesidade é tecida no tecido da sociedade”, na medida em que as crianças, desde tenra idade, “atribuem traços negativos a indivíduos com um tamanho corporal maior, incluindo preguiça, falta de popularidade ou mau cheiro”.

“As pessoas que vivem com obesidade internalizam isso desde muito jovens e acabam por se autoestigmatizar. Elas assumem a responsabilidade de lidar com o peso por conta própria e demoram a procurar ajuda de especialistas médicos. Sem ajuda, a falha em perder peso / manter a perda de peso reforça visões negativas de si mesmo e afeta o humor e a autoestima. Infelizmente, as imagens que a sociedade considera ideais estão fora do alcance da maioria dos adultos”, garante o também autor de um estudo cujos resultados foram apresentados, no dia 5 de maio, no Congresso Europeu de Obesidade, em Maastricht, na Holanda.

De acordo com a informação recolhida por Halford, um em cada três adolescentes não sente capacidade de falar com os pais sobre o excesso de peso e, por isso, muitos recorrem às redes sociais para encontrar conselhos. Assim, os mais jovens, quando pretendem obter informação acerca de um estilo de vida saudável, controlo e perda de peso consultam o YouTube (34%), as redes sociais (28%), a família e os amigos (25%), as plataformas de pesquisa (25%) e, por último, conversam com os médicos (24%).

Halford destaca que estas percentagens são preocupantes porque, para além de demonstrarem que os mais novos não recorrem aos profissionais de saúde em primeiro lugar, espelham “duas tendências particularmente alarmantes”, isto é, a “taxas crescentes de obesidade em crianças e adolescentes (o que leva à obesidade adulta em geral) e o número de adultos que passam da obesidade ‘geral’ para a mais grave, dos graus I, II e mórbida”, sendo que “ambos impulsionarão taxas crescentes de doenças não transmissíveis e, mais importante, terão um impacto significativo na qualidade de vida” destas pessoas.

Por outro lado, 24% destas crianças e destes adolescentes não reconhecem que têm excesso de peso, o que pode dificultar ainda mais a procura de ferramentas para lidar com a patologia em causa. “Em primeiro lugar, existe a crença de que esta pode ser apenas uma fase (chamada de ‘gordura de cachorrinho’) e, em segundo lugar, os adolescentes podem estar numa família ou comunidade em que a obesidade é prevalente, então podem não sentir que são diferentes”, sublinha, realçando que “a maioria das pessoas, quando pensa em obesidade, pensa em exemplos extremos e as imagens veiculadas na imprensa agravam o problema. Algumas pessoas com obesidade têm um Índice de Massa Corporal (IMC) mais baixo e, como as imagens que os media normalmente partilham não os representam, eles podem assumir que não estão a viver com obesidade”.

“Precisamos de trabalhar arduamente para remover as barreiras entre profissionais de saúde, adolescentes e os seus pais/cuidadores para que as conversas construtivas comecem e os adolescentes possam ser apresentados a caminhos de tratamento eficazes e adequados. Uma dessas grandes barreiras é a falta de compreensão da obesidade como uma doença crónica progressiva, com reincidência”, na medida em que “essa perceção errada alimenta o estigma que leva à auto-estigmatização dos adolescentes e também aponta para a falta de compreensão de muitos profissionais de saúde”.

“Precisamos de reconhecer e tratar a obesidade como uma doença como qualquer outra doença crónica (por exemplo, a diabetes). A intervenção precoce melhora os resultados. Não há cura para a obesidade, mas existem tratamentos eficazes disponíveis que, se usados adequadamente em serviços de controlo de peso, podem melhorar os resultados ao longo da vida”, diz, frisando que “enquanto sociedade, precisamos de combater o meio ambiente e os fatores sociais da obesidade” porque “isso pode reduzir a prevalência de obesidade por meio da prevenção e também ajudará aqueles com obesidade a gerir melhor a doença”.

 

Mais crianças com obesidade no Norte do país

Para aprofundar o conhecimento acerca da obesidade nesta faixa etária, o professor de Psicologia realizou o inquérito “ACTION teens”, que incluiu 5.275 adolescentes com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos que vivem com obesidade, 5.389 pais/cuidadores e 2.323 profissionais de saúde. Os países incluídos foram Austrália, Arábia Saudita, Colômbia, Coreia do Sul, Espanha, Itália, México, Reino Unido, Taiwan e Turquia.

Ainda que Portugal não integre esta lista, sabe-se, devido ao estudo COSI Portugal, sistema de vigilância nutricional infantil integrado no estudo Childhood Obesity Surveillance Initiative da OMS/Europa, coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), que os Açores (35,9%), a Madeira (31,7%) e o Norte (31,3%) foram as regiões que apresentaram maiores prevalências de excesso de peso e o Algarve a menor (21,8%). Quando falamos da prevalência da obesidade, esta é mais elevada nas regiões Norte (12,3%), Centro (13,4%), na Madeira (13,7%) e nos Açores (17,9%), sendo mais reduzida no Alentejo (9,6%). Os resultados foram divulgados em outubro do ano passado.

“A incidência na pediatria vai acompanhando a incidência no adulto. Verifica-se no geral, na população. Os números são muito preocupantes e acabam por traduzir os nossos novos hábitos, a nossa maneira de viver em sociedade que é distinta e, apesar de tudo, tem-se tentado fazer quase uma reversão deste ciclo de crescimento. Os números têm melhorado nos últimos dez anos, mas há muito a fazer”, admite Mafalda Marcelino, diretora do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Forças Armadas, desempenhando igualmente funções como secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo.

“Acho que há várias dimensões: primeiro, o indivíduo em si. A obesidade é uma doença desde 2004, é jovem no sentido do seu reconhecimento. A mudança de paradigma pode parecer um simples conceito, mas, na verdade, é nova. Passámos a pensar nela como: o que está por detrás? O que podemos fazer para preveni-la? Que tipo de acompanhamento devem ter estas pessoas? Antes, podiam estar conformados com a sua circunstância porque não associavam o excesso de peso a problemas de saúde”, constata a médica, destacando que “temos de transmitir um alerta para que as pessoas possam recorrer aos profissionais de saúde”.

“A cirurgia bariátrica tem alguns anos, a terapêutica médica também, mas a falta de soluções contribuía para que as pessoas ficassem desmotivadas e vinha a lengalenga de ‘feche a boca e faça exercício’. Esta aparente insensibilidade tinha a ver com a ausência de armas para ajudar os doentes obesos”, afirma, declarando que, atualmente, há muito mais sedentarismo – ao contrário daquilo que acontecia antigamente, com trabalhos mais fisicamente ativos –, as crianças passam menos horas a brincar na rua e, em termos nutricionais, os alimentos mudaram muito porque fazemos uma alimentação baseada em comida processada por termos pouco tempo.

“Temos de reinventar a forma como vivemos em sociedade, a escola e o trabalho para dar prioridade às medidas de estilo de vida que parecem sempre uma ‘missa frustrante’, mas que têm de ser incutidas no nosso quotidiano. Os profissionais de saúde têm de estar disponíveis para ajudar. A referenciação para uma consulta de obesidade demora muito tempo, a cirurgia também, a terapêutica médica não é acessível a todos… As pessoas podem associar complicações associadas à obesidade e, normalmente, é aí que procuram ajuda”, confessa, admitindo que se a obesidade for tratada, doenças como a hipertensão arterial, a diabetes ou até o risco de doenças oncológicas podem ser revertidos ou prevenidos.

“Há mais de 2 milhões de portugueses que vivem com excesso de peso ou obesidade e alguns que não são ou já não são obesos porque todos os dias lutam contra esta doença. Este problema não pode ser resolvido apenas numa esfera. A obesidade tem impacto no indivíduo, na família, no trabalho… Condiciona a sociedade no geral”, refere, elucidando que “vale a pena investir e é preciso medidas de saúde pública para conseguirmos trilhar este caminho. Temos de ser proativos para auxiliar estas pessoas”.