Companhia das Índias. O grande negócio da pirataria

Tudo começou com a bênção da rainha Isabel I para que os corsários saqueassem navios portugueses e espanhóis. Um grupo de comerciantes achou os lucros interessantes e criou uma empresa para patrocinar novas ações. Acabariam por ter nas mãos o monopólio do negócio da Índia.

NOVA DELHI – Começou por enganar toda a gente, viveu a enganar meio mundo, desapareceu continuando na sua tremenda origem de enganos. Falo da East Indian Company, mais conhecida entre nós pela Companhia das Índias, não a holandesa, não a portuguesa, mas a inglesa, tal como gostaríamos de dizer no início de 1900, a mais pérfida de todas.

Nasceu 300 anos antes: em Dezembro de 1600. Humildemente estabeleceu-se como uma pequena empresa constituída por um grupo de negociantes londrinos com a intenção de participarem no comércio internacional do chá, dos têxteis e das porcelanas, um mundo na altura dominado pelos portugueses e pelos espanhóis, uns com as suas rotas de comércio através da Índia, os outros com as rotas mais baseadas nas Filipinas. Corrupção. E endémica. Eis como muitos historiadores explicam como é que esta pequena empresa se tornou um dos poderes económicos mais poderosos da história do universo. Ao ponto de ser dona de um exército de cerca de 260 mil soldados, na altura o dobro do contingente de todo o exército britânico.

O projeto teve início em 1577. Sir Francis Drake, um pirata de pai e mãe que chegou ao título de Sir (foram muitos, entretanto), descobriu que o seu trabalho sujo de capturar e roubar caravelas portuguesas e galeões espanhóis, vindos da América do Sul carregados de ouro e prata, funcionava melhor se em vez de hastear a Jolly Roger, a macabra bandeira das tíbias cruzadas por detrás de uma caveira, no topo dos mastros dos seus navios, a substituísse pela bandeira da marinha inglesa. Passava despercebido (a princípio) e desfazia os inimigos pela calada, à traição, como se diria nos livros de Emilio Salgari. Claro que, para isso, precisava da autorização da coroa. Mas, se estamos a falar de piratas, não vamos entrar em conversinhas de tuta e meia. Depois de ter chegado a Londres com os porões carregados de especiarias e outros luxos num valor do qual a soberania britânica reteve qualquer coisa como cinco mil por cento, deram-lhe carta branca para avançar de vela enfunada em direção ao Oceano Índico, graças a uma requisição feita por vários mercadores londrinos e que obteve o indispensável beneplácito da rainha Isabel I. Ou seja, Isabel, que só agora viu outra usar o mesmo nome, não teve qualquer pejo em legalizar a pirataria. Pelo contrário: oficializou-a. Portugueses e espanhóis que se pusessem a fancos.

Um dos maiores roubos desses anos em que os mares eram intensamente navegados teve como protagonista um dos grandes rivais de Francis Drake, Walter Raleigh (que também teve direito a ser Sir, obviamente): a vítima foi o Madre de Deus, um enorme navio português de quatro mastros imponentes, saqueado durante a Batalha das Flores, no Mar dos Açores, no dia 13 de Agosto de 1592, dano colateral de uma batalha naval ente espanhóis e ingleses  nessa zona do Atlântico e que durou cerca de um mês. Rebocado até às lamacentas docas do Tamisa, o Madre de Deus provocou um alvoroço em Londres. Nunca se vira, até aí, embarcação tão larga e impressionante. Claro que Isabel nem se deu ao trabalho de espreitá-la por uma janela. Só queria saber do que trazia no bojo: arcas e arcas cheias de moedas de prata, de barras de ouro, de joias de todas as espécies, e espermacete de baleia, tapetarias, sedas, canela, pimenta e um sem número de outras especiarias, ébano e marfim e o mais que se está para saber ou imaginar. Convenhamos: para quê darem-se ao trabalho de ir às fontes recolher riquezas se era muito pais simples esperar pelos pategos que já as traziam acomodadas em barcos como este, e simplesmente roubá-las? Uma ideia genial, é preciso reconhecer. Mesmo que para isso fosse preciso passar por cima de determinadas convenções morais, entre as quais a de empregar salteadores profissionais. Não, a rainha Isabel, primeira do nome, não tinha grandes escrúpulos.

 

Sem um pingo de vergonha

Os ingleses tinham-se tornado oficialmente os grandes piratas dos mares, embora a expressão preferida para os referir tenha sido a de corsários. Há sempre uma forma de não ser tão bruto com as palavras, bem à maneira britânica que, então, e não por acaso, tinha o francês como língua oficial da corte.

Vamos até Setembro de 1599. Um grupo de comerciantes londrinos, encantados com a forma como os proveitos alheios chegavam até ao porto do Tamisa com tamanho lucro, resolveu inverter o sistema. Chamaram-se a si próprio The Adventurers e decidiram patrocinar a próxima investida, desta vez ao Índico. Juntaram entre eles mais de 30 mil Libras e tiveram a delicadeza de perguntarem à rainha se a coroa queria fazer parte do empreendimento. Isabel, ainda com os cofres cheios de tantos saques, declinou, mas incentivou a iniciativa. O grupo conseguiu mais investidores, arranjou mais navios, e criou uma frota que valia cerca de 68 mil Libras. Aí, Isabel, encolheu os ombros e aceitou que o empreendimento fosse oficializado. Isto é: By appoitment of the Queen. Desta forma nasceu a que começou por chamar-se Governor and Company of Merchants of London Trading into the East Indies, recebendo o monopólio de todo o comércio que se se realizasse para lá do_Cabo da Boa Esperança e a partir do oeste do Estreito de_Magalhães. Pouco importava, naturalmente, a amplitude da palavra comércio. Quem se atrevesse a furar este monopólio, veria os seus navios apreendidos e todas as suas posses divididas, cinquenta por cinquenta, entre a coroa e  a companhia. A chefia da nova empresa era atribuída a um governador e a 24 diretores que formavam o Comité Diretivo. Pouco tempo depois, esta comissão de proprietários estava comodamente instalada num palácio da Leadenhall Street e preparada para decidir sobre os destinos de meio mundo. Pelo menos.

Outro pirata, este mais meia-tijela, James Lencaster (que foi a Sir, como é óbvio), foi o escolhido para chefiar a primeira missão da recém-nascida Companhia das Índias. Comandando o Red Dragon, James capturou um navio português de 1200 toneladas no Estreito de Malaca e estabeleceu duas feitorias, uma na Ilha de Java e outra nas Molucas. Como se vê, não precisavam de avisar ao que vinham. Valia tudo. Era o poder sobre os mares que estava em causa e os ingleses tinham decidido que a canção que viria a ser criada por um tal de James Thompson, um poeta escocês, em 1740, passava desde já a fazer todo o sentido: «Rule, Britannia! rule the waves: Britons never will be slaves». Vá lá, quanto muito escravos da ganância. Mas não há povos perfeitos.

Isabel morreu em 1603 e Jaime, o filho de Maria da Escócia, tornou-se o primeiro rei dos dois reinos unidos. Entretanto a guerra com Espanha tinha terminado e os ingleses sentiam-se à vontadinha para fazerem aquilo que bem lhes dava na gana. As expedições continuaram mas os lucros não eram muito visíveis, sobretudo porque a Companhia Holandesa das Índias Orientais se tinha estabelecido como grande exploradora do comércio de especiarias. E todos sabemos que quando alguém forma uma empresa fica na expectativa de que esta devolva com juros o dinheiro investido. Apesar de, aqui e ali, tirarem proveito do saque a navios portugueses e holandeses, a Companhia das Índias decidiu, através do seu conselho superior, que o futuro estava em instalar-se convictamente em território indiano. Depois de negociações com o império Mongol e de uma autorização passada pela coroa britânica, uma frota de navios instalou-se no porto de Surat, na província do Gujarat, a partir de 1608. O passo seguinte seria West Bengal, onde acabariam por se instalar em Calcutá. Não tardaria que todo o subcontinente ficasse refém dos interesses ingleses.

A conquista da Índia

Estamos a falar de gente rica, muito rica. Os associados da Companhia das Índias ganharam um poder tal que não se limitaram ao comércio e entraram pelo campo da política. Em breve, vários deles surgiram no Parlamente formando um lobby fortíssimo. Sir Sidney Godolphin, 1º Conde de Godolphin, Secretário-de-Estado do Tesouro, passou a ser um companheiro de estrada chegando a transferir da coroa para a empresa algo como três milhões e duzentas mil Libras. Estamos a falar de dinheiro a sério. De um nível de investimento nunca visto até então. A autonomia era tão grande que tiveram a protérvia de alterar o nome para United Company of Merchants of England Trading to the East Indies. A Inglaterra perdia-se no meio de tanto palavrório. E a verdade é que a colonização da Índia foi feita através da companhia, limitando-se o rei a ir renovando as concessões sempre que tal se tornava necessário.

A partir de certa altura, a França tomou posição. A expansão britânica também punha em causa não apenas as suas feitorias em território indiano, como Pondichéry e Mahé, por exemplo, mas abriu uma frente de batalha na América do Norte. Para os gananciosos chefes da companhia, o continente americano não provocava interesse especial. As colónias inglesas não tiravam grandes lucros e eram, na sua maioria, locais desagradáveis perdidos entre pântanos e mosquitos. Ou seja, a coroa que lidasse com essa questão menor.

Mas os franceses não iam deixar, pura e simplesmente, os seus inimigos de estimação tomarem conta do subcontinente indiano sem darem resposta adequada. Por isso, aquela que ficou conhecida por Guerra dos_Sete Anos, acabaria também por ter a Índia como palco de confrontos. Confrontos desiguais, acrescentemos desde já. A Companhia das Índias tinha dinheiro que chegasse e sobrasse para contratar tropas indianas, os chamados cipaios (de shiphia, que significa soldado), gente que conhecia como a palma das suas mãos os terrenos de combate e que demonstravam uma resistência às altas temperaturas, às chuvas brutas das monções, e à dureza dos desertos que lhes dava uma vantagem tremenda. Só para se ter uma ideia do poder da companhia, em 1857 estavam instalados na Índia 40 mil soldados britânicos. O grosso da força era formada por cipaios que ultrapassavam os 200 mil. Os ingleses impõem-se aos franceses em lugares fundamentais como Bombaim, Madrasta e Bengala. Mas ficariam surpreendidos com o orgulho exibido pelos seus soldados contratados que começaram a não achar graça nenhuma ao facto de andarem a morrer que nem tordos por uma guerra que não era sua. As exigências dos cipaios foram aumentando até que se viraram contra  os ingleses obrigando a um esforço militar para poderem ser dominados.

Robert Clive, que ganhou o epíteto de Clive of Índia, assumiu um papel preponderante durante essa fase decisiva da manutenção da companhia no território. Entretanto, na Europa, a Inglaterra ganhava outra batalha ainda mais importante: a da Revolução Industrial. A implantação do caminho de ferro, que permitia a deslocação mais rápida e cómoda para os exércitos chamados a apagar focos de rebelião um pouco por toda a parte acabaria por se tornar, provavelmente, o maior legado britânico na Índia que tem, hoje em dia, uma das mais gigantescas redes de comboios de qualquer país do mundo.

Chegara, no entanto, o momento em que tanto o Parlamento (apesar dos muitos infiltrados) como a coroa sentiram que o monopólio do comércio da Índia permitia à companhia um poder desmesurado. O Government of India Act de 1858 foi votado de certa forma surpreendente decidindo pela extinção da Companhia das Índias. A partir de agora, seria o poder estabelecido e reconhecido a tomar conta de todas as possessões e negócios até aí dominados pelos comerciantes. Lord Palmerston, o Primeiro-Ministro, reconheceria que a revolta dos cipaios tinha contribuído para esta medida, revelando que deixar o poder militar nas mãos de indianos contratados era uma política que não se enquadrava com as ideias coloniais britânicas. Poucos meses mais tarde, a rainha Victoria afirmaria solenemente: «We hold ourselves bound to the natives of our Indian territories by the same obligation of duty which bind us to all our other subjects». Os indianos tornavam-se súbditos do Império Britânico. Chegara a hora do British Raj.