Roberto Bete. “Sim! Os homens também podem engravidar”

Roberto Bete nasceu mulher, mas depressa se apercebeu de que não se identificava com o corpo que tinha. Recentemente viralizou nas redes sociais depois de começar a partilhar a história da sua gravidez. Atualmente homem trans, casado com Erika Fernandes – também ela uma mulher trans que nasceu homem – juntos têm mostrado o que é…

Até a metade do século passado se alguém nos dissesse que seria possível um homem engravidar, pouca gente acreditaria. A maternidade era algo exclusivo das mulheres cisgénero – pessoa cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído no nascimento. Tudo aquilo que fugisse dessa norma, regra geral, não era visto com bons olhos. O conceito daquilo que é o género, sexualidade, da maneira como nos olhamos e nos revelamos perante a sociedade, do amor e de família, tem mudado com o passar do tempo. Talvez ancorados na ideia da filósofa americana Beatrice Bruteau – que nos dizia que “não podemos aguardar que os tempos se modifiquem e nós nos modifiquemos com eles, por uma revolução que chegue e nos leve com a sua marcha. Nós mesmos somos o futuro. Nós somos a revolução” – têm sido cada vez mais aqueles que procuram ser o mais próximo daquilo que sentem, mudando de género. Ou seja, que se assumem como pessoas trans-pessoas cuja a sua identidade ou expressão de género difere, total ou parcialmente, das expectativas associadas ao sexo atribuído ao nascimento. 

Em Portugal, por exemplo, no ano passado foram realizadas 54 cirurgias genitais, sendo que cerca de 400 pessoas alteraram o seu nome e marcador de género nos documentos legais. Por isso, são também cada vez mais as pessoas que contam o seu testemunho através das redes sociais, que se fazem ouvir nos meios de comunicação e que tentam “normalizar” esta questão. Mas Roberto Bete, de 32 anos – que se assume como um homem brasileiro trans – tem ido para além disso, conseguindo que a sua história chegasse a todos os recantos do mundo. Ele, em conjunto com a sua esposa Erika Fernandes – também ela mulher trans -, tiveram o seu primeiro filho, Noah. E foi Roberto quem engravidou. Já há algum tempo que ambos partilhavam as suas “transições” nas redes sociais, colecionando milhares de seguidores. Contudo, foi através da campanha da Calvin Klein, no último Dia das Mães, comemorado no dia 8 de maio, que o casal trans atingiu a maior visibilidade. A campanha da marca internacional teve o objetivo de destacar “a realidade de novas famílias”. “Podemos reproduzir biologicamente ou de coração… Nosso lugar é amar e ser amado”, lê-se numa das fotografias partilhadas pela marca internacional. E Noah nasceu dois dias depois. Mas como? “Somos um casal transcentrado, Roberto é um homem trans e eu sou uma mulher trans. E seria igual se fossem duas mulheres trans ou dois homens trans. Eu não sou redesignada, ainda tenho o meu órgão genital biológico. Tenho um pénis de mulher. E Roberto também ainda tem o órgão genital com o qual nasceu [o de mulher]”, explicou Erika Fernandes ao canal de Youtube brasileiro Cortes Pod Travah. 

A história de Roberto Roberto Bete, atualmente empreendedor, ficou conhecido após participar no reality show O Crush Perfeito, da plataforma de streaming Netflix. Em adolescente nunca gostou de namorar, de “ficar com os meninos na escola”, mas tinha uma paixão grande pela professora de biologia. “Eu não sabia se gostava dela como mulher ou se eu queria ser ela!”, contou ao Canal de Barba Ruiva. “Eu tinha essa dúvida na minha cabeça, mas com o tempo comecei a perceber que não queria ser como as meninas, eu queria as meninas! Descobri isso tinha mais ou menos uns 15 anos, ano em que entrei para o time de futebol, comecei também a entrar nesse meio (mais masculino) e a descobrir outras coisas”, continuou. Mas só aos 17 anos é que começou realmente aquilo que gostava, já que as suas irmãs insistiam muito para que fosse feminino. “As minhas irmãs me impunham usar vestidos e saltos altos. Elas falavam para mim que se eu queria sair com elas, tinha de deixar que elas me arrumassem. Ai eu tinha de fazer isso”, lembrou. Dois anos depois, através da televisão, Roberto descobriu que podia mudar o seu físico. “Vi um transgénero numa entrevista e percebi que seria possível eu me caracterizar daquela forma. Comecei então a pesquisar tudo sobre o que tinha de fazer, o que precisava começar a tomar… Aí comecei a fazer por conta própria! O que não se deve fazer por ser muito perigoso”, revelou. Primeiro, queria ter barba, porque a sua sobrinha ia fazer o aniversário de 15 anos e entre os príncipes estavam apenas o seu pai e o irmão. “Eu falei: ‘Bolas! Para eu ser candidato a príncipe e dançar com ela, eu tenho de ter barba! A minha barba precisa crescer até novembro!’. Procurei por minoxidil e comecei a passar e a passar e consegui! Em novembro já tinha barba! Mas eu sempre quis ter. Acho que nestes casos a barba é o que a gente mais quer ter! No princípio ficava penteando todo o dia”, elucidou. Depois, começou a tomar hormónios, que terá de tomar para o resto da vida. “Demorei um ano para conseguir vaga no sistema e fazer os tratamentos. Eu não pago nada, é o Governo. Mas antes disso eu tive de tomar as coisas por conta própria”, admitiu. Roberto fez também uma mastectomia – cirurgia de remoção completa da mama. Considera, por isso, que começou realmente a sua transição com 22 anos. “O meu físico não era compatível com aquilo que eu sentia de mim. Na época eu não tinha essa cabeça desconstruída que eu que tenho hoje. Queria ser um homem cisgénero, tanto que eu não gostava que as pessoas falassem que eu era um homem trans. Depois da minha mastectomia, eu comecei a relacionar-me com muitas pessoas trans e a entender que não tinha nada de errado comigo, com o meu corpo”, acrescentou ao podcast Cordes Pod Travah.

Para a sua família “no começo foi complicado”, não em relação à sua transição – que fez quando já morava sozinho e era independente -, mas sim por namorar com uma mulher, ou seja, durante o período em que se considerava “lésbica”. “Eu tive de sair de casa porque eles não aceitavam me ver namorando uma menina. Agora, em relação à minha transição, eu nunca dei brecha para ninguém opinar. Saí de casa e fui fazer a minha vida para poder fazer o que eu quisesse”. Felizmente, atualmente, o cenário é outro. Além de compreender, a família apoia. “Eles até olham com muita admiração por mim!”, afirmou ao canal de Youtube. 

Como é que um homem pode engravidar? Segundo Miguel Saraiva, que integra a equipa de Endocrinologia da Unidade de Sexologia e Género (USEG) do Centro Hospitalar Universitário do Porto, o processo de transição corresponde ao período durante o qual a pessoa trans ou não binária transita do papel de género tradicionalmente associado ao sexo com que nasceu para um papel de género diferente. “Este processo de transição pode ou não incluir intervenção médica/cirúrgica para o efeito”, frisa ao i o especialista. Relativamente à possibilidade destas pessoas terem filhos, para Miguel, “todos nós temos direito a cuidados de saúde sexual e reprodutiva, independentemente da nossa identidade de género” e, no caso das pessoas trans, “existem algumas opções”: “Idealmente, a preservação de gâmetas (células com potencial reprodutivo como espermatozoides e óvulos) deve ser feita antes de iniciarem a Terapêutica Hormonal de Afirmação de Género (THAG) – que reduz a capacidade fértil, tanto em indivíduos transmasculinos como transfemininos, de forma proporcional à duração da mesma -, para maximizar as hipóteses futuras de sucesso reprodutivo com a utilização destas células com técnicas de procriação medicamente assistida, sobreponíveis às que são efetuadas em pessoas cisgénero”, explicou. Uma outra opção, por exemplo, quando a pessoa trans pretende reproduzir-se e já se encontra sob THAG, passa por “interromper transitoriamente esta terapêutica para que o eixo hormonal das hormonas sexuais do sexo com que nasceu volte a entrar em atividade e possa eventualmente recuperar capacidade fértil”. De acordo com Miguel Saraiva, nestes casos, a recuperação do potencial reprodutivo “não é garantida” e, por vezes, é necessário “interromper a THAG por largos períodos de tempo”. “No caso do Roberto e Erika, a interrupção desta terapêutica demorou um ano e meio até que conseguissem uma gravidez”, contou. 

Segundo o mesmo, este foi “um caso de sucesso em saúde reprodutiva de pessoas trans”. “Trata-se de um casal particular, na medida em que se tratam de duas pessoas trans. O Roberto não foi sujeito a histerectomia (remoção cirúrgica do útero). Segundo o que li, esta gravidez foi concebida de ‘forma natural’, o que é possível caso ambos não tenham sido submetidos a cirurgia de afirmação de género genitourinária (preservando os órgão sexuais com que nasceram) e tenham interrompido transitoriamente a THAG para o efeito”, reforçou o especialista, acrescentando que uma outra opção para o casal seria recorrerem, por exemplo, à técnica de fertilização in vitro. “Recolha prévia dos gâmetas de cada um, fertilização laboratorial e posterior implantação no útero do Roberto”, exemplificou, admitindo ficar “feliz com o mediatismo do mesmo por ajudar a propagar a informação e a educar a população”. 

A amamentação nas pessoas trans Da mesma forma que pessoas trans podem engravidar, também podem amamentar. E isso foi um desejo de Erika, que nasceu homem e não fez a mudança de sexo, muitos antes do casal saber da existência do pequeno Noah. Na sua página de Youtube – onde partilha a sua transição com os seguidores -, a modelo, atriz e também tatuadora, contou que descobriu a possibilidade de amamentar na altura em que se começou a falar de bebés lá em casa. “Como o Roberto fez a mastectomia, acabando por comprometer algumas glândulas mamárias, nessas pesquisas eu percebi que o que faz uma mulher cis amamentar é apenas uma questão hormonal. Na verdade, o Roberto também pode produzir um pouco de leite, mas não pode amamentar, porque não vai ter por onde sair… Ou seja, todo o ser humano quando tem uma glândula mamária, o que faz ela ser induzida são os hormónios que aumentam a prolactina. Foi isso que foi acontecendo no meu tratamento”, admitiu. Segundo a mesma, as médicas “fizeram a indução, simulando uma gestação no seu corpo”. Todo o hormónio que o Roberto produziu durante a gestão, foi colocado em Erika. Em menos de um mês, 20 dias, a atriz já estava a produzir leite. 

De acordo com Miguel Saraiva, existem protocolos de indução de lactação (com recurso a medicações específicas e estimulação mamária) para mulheres cisgénero, com aplicabilidade há já vários anos. “Uma mulher transgénero que tenha feito THAG com estrogénio tem desenvolvimento da glândula mamária. Assim, anatomicamente, tem capacidade de amamentar caso seja exposta ao estímulo correto”, explicou, frisando que apesar da indução de lactação em mulheres transgénero ainda seja considerada “experimental”, já há casos publicados com sucesso nos quais se utilizou, precisamente, protocolos sobreponíveis aos que se aplicam em mulheres cisgénero. “Terá sido esse processo que aconteceu com a Erika”, apontou. Segundo a BBC, o primeiro caso de uma mulher trans produtora de leite materno ocorreu no Reino Unido, em 2018. A paciente de 30 anos produziu aproximadamente 200ml de leite por dia e o bebé foi amamentado exclusivamente por seis semanas. E, durante esse período, explicavam os médicos na altura, o crescimento, a alimentação e os hábitos intestinais do bebé foram “apropriados ao desenvolvimento”.

Interrogado se este tipo de processos são dolorosos, o especialista respondeu que não: “A THAG, quando é organizada e prescrita por um profissional com competência na matéria, é uma terapêutica segura e eficaz. O mais difícil, a meu ver, ainda são os tempos de espera demorados por haver poucos centros a trabalhar nesta área e a patologização do que é ser trans por alguns profissionais de saúde, o que atrasa o processo”, lamentou. Mas e os riscos? De acordo com Miguel Saraiva, em medicina, “quase nenhum procedimento é isento de riscos”: “O risco que me parece mais relevante neste caso é o ressurgimento ou adensamento da disforia de género com a interrupção da THAG para maximizar o potencial reprodutivo. É sabido que a interrupção da hormonoterapia em pessoas trans se associa a uma regressão da masculinização/feminização corporal obtidas com esta terapêutica e isso pode acarretar um prejuízo significativo da saúde mental para a pessoa trans”, elucidou.

A transexualidade em Portugal Em Portugal é possível que um homem trans tenha um bebé desde 2011, uma vez que com a Lei 7/2011, nenhuma pessoa precisa de submeter-se a alterações ao corpo para ver aprovado pelo Estado Português o género masculino nos documentos legais. Além disso, a lei atualmente em vigor, 38/2018, reforça a autodeterminação em relação ao género e ao corpo, logo, as pessoas podem ter uma identidade e uma expressão de género lida socialmente como masculinos e mesmo assim manter o sistema reprodutor interno que permita uma gravidez.

Apesar de na sua prática clínica nunca ter contactado com uma gravidez numa pessoa ou casal trans, o especialista afirma não ter dúvidas “de que isso acontecerá num futuro próximo”. “Cada vez mais, e como é natural para qualquer utente independentemente da sua identidade de género, as pessoas trans procuraram cuidados de saúde reprodutiva e sexual e o nosso país não é exceção. Vem lá um futuro mais plural e com mais contacto (e, espero, respeito) pela diversidade e individualidade. É uma questão de tempo”, acredita.

Já para Sara Malcato, Psicóloga Clínica e membro da Associação ILGA-Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), esta possibilidade “leva-nos a questionar a forma como encaramos os cuidados de saúde ginecológicos e obstetrícios, uma vez que não são apenas as mulheres cis que podem gerar bebés, logo, serviços com nomes como ‘consulta da mulher, ‘consulta da mãe’, por exemplo, devem ser repensados, já que estes termos excluem outras pessoas que necessitam igualmente destes cuidados de saúde e não se identificam como mãe/mulheres”. “A ciência, já demonstrou que o género (e os papéis de género e expectativas a estes atribuídos) são construções sociais. A American Psychology Association já veio desmistificar a ideia do binarismo de género, reconhecendo as várias dimensões da identidade sexual como espetros e não como binómios estanques de masculino/feminino”, destacou. 

De acordo com a mesma, toda a nossa sociedade “está construída sob o ponto de vista do género, nomeadamente do binarismo de género”. Desde a categorização entre M/F no cartão de cidadão, à escolha do nome que vamos dar à criança que vai nascer ser escolhido mediante a lista de nomes de meninos/meninas, ao boletim de saúde do bebé dado pelo SNS quando nasce uma criança, ser decidido em azul ou cor de rosa, ao quartinho do bebé cheio de estereótipos de género (cor escolhida, brinquedos, roupas), etc, “tudo na sociedade está criado com base no pressuposto de género masculino e feminino”. “Inevitavelmente apropriamo-nos destas ideias de género e tentamos adequar-nos às expectativas sociais que recaem em cada pessoa mediante a atribuição de género que lhe foi dada à nascença”, explica ao i a psicóloga. 

Além disso, “os manuais escolares estão repletos de representatividade hetero e cisnormativa, os desenhos animados, as séries, os filmes, as novelas perpetuam esta representação”, o que “leva a que as pessoas que não se identificam como cis e/ou hetero se sintam excluídas”. “Desde o balneário que se vai usar, caso sejam praticantes de desporto, à roupa que se vai usar, à casa de banho do centro comercial que se pretende ir, etc. Todos estes momentos são momentos de angústia para as pessoas trans e reforçam a exclusão social de que são vítimas”, exemplificou Sara Malato, somando ainda “a dificuldade no acesso ao mercado de trabalho, ao mercado habitacional que, caso a pessoa não tenha uma boa rede de apoio e suporte, poderão empurrar as pessoas trans para situações de extrema vulnerabilidade”. Segundo a especialista, a literatura mostra que as pessoas LGBTI+ “têm maior probabilidade de sintomatologia ansiosa, depressiva, comportamentos auto-lesivos, consumos de substâncias do que pessoas hetero e cis”. Nos caso específico das pessoas trans, a média estimada de ocorrência de tentativas de suicidio é “2 vezes superior às pessoas cis”. “As questões de saúde mental não estão relacionadas com o facto das pessoas serem LGBTI+, estão associadas ao facto de, por serem LGBTI+, estarem sujeitas ao estigma, discriminação, preconceito e rejeição”, reforço.

Para si, estamos a percorrer um “caminho de igualdade” no que toca às atuais leis sobre a proteção das pessoas trans, sendo que tanto a primeira lei da identidade de género (Lei 7/2011), como a lei atualmente em vigor (Lei 38/2018) foram “inovadoras aquando da sua aprovação”, elevando Portugal para os países cimeiros no que toca à proteção das pessoas trans. “Porém, ainda não estão vertidas e reconhecidas na lei as pessoas não-binárias, por exemplo, sendo esta uma lacuna que ainda é necessária suprimir”, alerta. Além disso, acredita a psicóloga, “não se mudam mentalidades por decreto-lei, o que significa que apesar das leis que temos, a experiência das pessoas no seu quotidiano ainda não reflete esta proteção”. “A DGS continua a não protocolar os cuidados de saúde nesta matéria, levando a que cada serviço atue mediante as suas próprias práticas. Continuam a existir escolas que desconhecem e/ou não aplicam o despacho do Ministério de Educação com orientações específicas nesta matéria. O que significa que além da criação da legislação é necessária a sua fiscalização e garantia que a legislação é corretamente aplicada”, reforça a especialista, acrescentando que, simultaneamente, é “necessário reforçar uma verdadeira educação para a sexualidade nas escolas”. “A Lei da Educação Sexual tem mais de 40 anos, contudo, continua a não ser devidamente aplicada. Deve ser uma disciplina que aborda a temática das IST’s e da gravidez, mas não deve limitar-se a estes temas. Deverá abranger temas como consentimento, afetos, abuso sexual, assédio, e também as várias orientações sexuais e amorosas, as várias identidades e expressões de género, não apenas para promover a representatividade, mas também validar todas as pessoas que não se encontram na heteronormatividade ou cisnormatividade, combatendo a discriminação, o estigma e a lgbtifobia”, defende.

O cuidado com os conceitos Isaac dos Santos sempre se viu como um homem. “O que foi bastante frustrante porque tive de esperar até aos 18 anos para poder ter o meu BI com o meu nome e marcador de género correto. Para poder começar a reposição hormonal e ver o meu corpo desenvolver as características corporais com as quais me identifico e que senti falta toda a minha vida. Para poder fazer a mastectomia que era o que mais me impedia de viver livremente”, contava ao i o ano passado a propósito de uma peça sobre a transexualidade. Depois de atingir a maioridade, o atual barbeiro e criador de conteúdos realizou então uma reposição hormonal que tornou a sua voz mais grossa, mudou as suas feições, distribuiu a sua gordura, fez com que lhe desaparecessem as ancas e crescer a barba. “Juntando isto à mastectomia consegui ter o corpo estereotipadamente masculino de que necessitava”, lembrou.

Segundo Miguel Saraiva, relativamente às pessoas trans e não binárias que procuram cuidados médicos em contexto do processo de transição, o primeiro passo “é que sejam avaliadas por um profissional de saúde mental com competência na matéria”. Posteriormente, e caso a pessoa trans ou não binária pretenda realizar Terapêutica Hormonal de Afirmação de Género (THAG), “é referenciada para consulta de endocrinologia para o efeito”. “Podemos iniciar terapêutica hormonal masculinizante ou feminizante, de acordo com os objetivos da pessoa utente”, contou o médico. Além disso, acrescenta, existem, ainda, procedimentos cirúrgicos de afirmação de género que, caso a pessoa trans ou não binária pretenda, podem ser realizados. “Alguns destes procedimentos idealmente implicam hormonoterapia prévia durante algum tempo (geralmente um ano) mas nem todos”, elucidou.

No que toca aos conceitos, de acordo com Isaac dos Santos, transexual “é um termo que tem vindo a cair em desuso, felizmente”. “Dividia-se as pessoas trans pelas que tinham feito cirurgias genitais e as que não tinham. As que tinha, eram transexuais, as que não tinham eram transgénero. Este conceito era muito invasivo e redutor. Ninguém tem absolutamente nada a ver com os nossos genitais. O termo que usamos é transgénero, ou trans que tem espaço para albergar todas as pessoas que não se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença”, frisou o barbeiro que defende que a sexualidade é “o conjunto de expressões de género, sexo biológico, identidade de género e orientação sexual”. “São todas as coisas que nos permitem saber quem somos e por quem nos sentimos atraídos”, esclareceu. Além disso, para Isaac, ainda se fala muito no “processo completo”, ou seja, em fazer todas as cirurgias para se ser “verdadeiramente” homem ou mulher. “Pessoalmente não acredito nisso! O género está em mim, não no meu corpo!”, frisou, contando que “muitas pessoas trans não têm planos para fazer uma cirurgia genital seja por não terem disforia genital, seja por não terem recursos financeiros”. “Mesmo as cirurgias feitas no público têm custos. É necessário ter um emprego que permita uma baixa. É necessário fundos para medicamentos pós-operatórios, deslocações para os hospitais, etc. Volto a frisar que nem todas as pessoas trans têm a necessidade de uma cirurgia gential! Necessitamos do corpo para nos afirmarmos, mas o corpo não define o nosso género. Eu sou tão homem hoje, quanto era antes de reposição hormonal e da cirurgia”, admitiu.

Mas Roberto não é o primeiro caso conhecido de um homem que engravida. Faz 13 anos, que Thomas Beatie, atualmente com 47 anos – um homem transgénero -, engravidou e a sua história se tornou famosa pelo mundo inteiro. No ano passado, o agora pai de quatro filhos e corretor da bolsa em Phoenix, EUA, falou ao TODAY Health: “Quando a minha história saiu, não havia uma única pessoa aos olhos do público como um homem transgénero – a maioria das pessoas nunca tinha ouvido falar disso!”, afirmou Beatie. “Foi a primeira exposição para muitas pessoas. E, além disso, mostrar a possibilidade de que elas podem dar à luz! Acho que expor a importância da fertilidade para pessoas trans foi uma grande revelação!”, lembrou. Depois de ter o seu primeiro filho, Susan, em 2008, Beatie deu à luz mais dois filhos com sua então esposa, Nancy Beatie. O casal separou-se em 2012 e, em 2016, o homem casou-se com a sua segunda esposa, Amber, com quem acabou por ter outro bebé, em 2018, a quem Amber deu à luz. No ano passado o mundo também ficou a conhecer a história de Rúben Castro, de 28 anos, o primeiro homem a engravidar em Espanha. O atual pai de Luar ( nome da bebé) nasceu mulher mas sempre soube que estava no corpo errado. Por outro lado, a vontade de um dia experienciar o que é a maternidade manteve-o “preso” ao seu corpo.

Quando interrogados pelo canal de Youtube brasileiro Plurais, sobre a expectativa enquanto uma família transcentrada e como pensam explicar ao Noah a sua realidade familiar, Roberto garantiu que o casal vai criar o filho “mostrando que todas as famílias são iguais”. “A gente está criando laços com outras famílias LGBTI+ para que ele tenha amigos e entenda que não está sozinho, que não é um acontecimento! Ele é comum! (…) Gestar é a coisa mais poderosa do universo! Então se você tem vontade, faça! Vamos transcender!”, rematou.