Kissinger formatou-se cientificamente no pensamento do equilíbrio de poder europeu do século XIX...
Por Francisco Gonçalves
A intervenção de Henry Kissinger no encontro de Davos apenas pode surpreender quem não conhece o pensamento (suas origens históricas e teóricas) e como implementou, rigorosamente, as suas ideias enquanto decisor político.
Kissinger formatou-se cientificamente no pensamento do equilíbrio de poder europeu do século XIX que visava, sempre, a acomodação das grandes potências, procurando evitar, entre estas, conflitos de grandes dimensões.
Do discurso podemos tirar duas ideias centrais: uma paz assente no regresso ao status quo ante e a não humilhação da Rússia, com vista a integrá-la no sistema internacional (Kissinger falou da Rússia enquanto essencial para a Europa).
Se a questão da humilhação russa é relativamente unânime, faltando esclarecer o que é humilhar. Pagamento de reparações pela guerra é humilhar? Não reconhecimento da sua ‘esfera de influência’ e de uma ‘soberania limitada’ no seu ‘estrangeiro próximo’ é humilhar? Obrigar a uma igualdade soberana, que a atual liderança russa parece não querer aceitar, é humilhar? Todas estas questões representam dimensões distintas do que pode constituir humilhação. O que, para os ocidentais, pode não ser humilhação, pode ser percecionado como tal pela Rússia.
A ideia de regresso ao status quo ante também não é clara. Qual é o status quo ante? O de 23 de fevereiro de 2022? O de 2014 (antes da invasão da Crimeia)? Esta é uma questão central da negociação. A Ucrânia aceita perder território? E o ocidente (conceito vago) aceita que volte a ser possível um Estado mais forte atacar o seu vizinho mais fraco, com vista a tomar parte do seu território?
O discurso de Kissinger provoca uma aversão junto das opiniões públicas, que olham para as questões internacionais na igual medida com que olham para as questões internas, como se estivessem reguladas pelo direito e por instituições com coercibilidade. Todavia, as mesmas opiniões públicas que se levantam contra a guerra na Ucrânia e contra a prepotência russa, não estão dispostas a acompanhar os ucranianos na sua guerra (que em grande medida também é nossa), ou sequer perder qualidade de vida – conforme poderá acontecer.
O que o discurso de Kissinger também tem de complexo é o facto de surgir, em pleno século XXI, com ideias ou conceitos do século XIX ou XX (’esfera de influência’, ‘soberania limitada’), aplicadas algumas pelo próprio (nos Acordos de Helsínquia), dificilmente aceites no atual status quo.
Kissinger surgiu, em Davos, como Putin no nosso quotidiano, como uma figura fora deste tempo. O seu realismo e pragmatismo foram excecionalmente úteis na reorganização de um sistema internacional fechado, como era o da Guerra Fria, mas podem estar deslocados do atualmente em redefinição.
Ainda que a Ucrânia venha a aceitar perder os territórios da Crimeia e Donbas a favor da Rússia, que mundo estaríamos a construir? Que mensagem se passariam para outras potências regionais ou outras potências revisionistas? Com que regras, que não as do poder, puro e simples, iria o sistema internacional conviver?
Todas estas questões eram da esfera dos poderosos no século XIX e retóricas no século XX, mas já vivemos no século XXI.
O mundo do século XXI, no qual quase todos queremos viver, não tolera com igual facilidade a prepotência do mais forte. A natureza humana muda mais devagar do que as sociedades humanas.