Dia da Criança. “O que damos aos filhos tem de ser sempre a fundo perdido”

Entre 25 a 35% das crianças e jovens portugueses apresentam sinais de mal estar psicológico. A professora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, coordenadora do estudo pedido pelo Governo, fala dos desafios neste Dia da Criança.  

Como estão as crianças portuguesas? Neste Dia da Criança, Margarida Gaspar de Matos, professora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, que há 30 anos trabalha com jovens e adolescentes, passa em revista os resultados do primeiro estudo sobre bem estar psicológico das crianças pedido pelo Ministério da Educação no pós-pandemia. Inquiridas mais de 8 mil crianças, do pré-escolar ao 12º ano, concluíram que um terço dos alunos e metade dos professores mostram sinais de sofrimento psicológico. 

Apresentaram recentemente os resultados do estudo que avaliou a saúde psicológica e bem-estar da comunidade escolar portuguesa. Como estão as crianças portuguesas e que resultados a surpreenderam?

Epidemiologicamente, quando fazemos o estudo à população, encontramos uma percentagem de 20% afetada. Neste caso e após a pandemia, essa percentagem é um pouco superior: entre 25-35% dos jovens apresentam sinais de mal estar psicológico ( em função dos diversos indicadores ). Isto não quer dizer que estejam doentes psicologicamente falando, mas revelam sinais de mal estar em pelo menos um dos indicadores em estudo.

A pandemia afetou mais as crianças mais novas ou as mais velhas?

Isso depende de quão mais novo e quão mais velho. Em geral a situação agrava-se com a idade, desde a educação pré-escolar até ao 12º ano. Depois há um “pico“ de desvantagem no 2º ano de escolaridade e no 8º ano de escolaridade que, curiosamente, correspondem aos alunos que mudaram de ciclo no início da pandemia ou iniciaram a sua escolaridade durante a pandemia.

Que problemas se acentuaram nestes dois anos e que outros já vinham de trás?

Vinham já todos de trás… A pandemia não inventou nada, evidenciou efeitos. Vemos por exemplo a irritabilidade, a tristeza, os sinais de ansiedade, os problemas de comportamento; a agressividade, a desesperança, o torpor… Aqui vemos algumas diferenças de género, com as meninas com mais tendência a sintomas de mal estar interiorizado e os rapazes mais otimistas e com sinais de mal estar mais externalizado. As meninas com maior proximidade na escola, mas a “sofrer” mais com a ansiedade avaliativa… Enfim: como antes, mas um pouco pior. 

O que lhe parece que será mais fácil recuperar e devia exigir a atenção geral de pais e educadores?

Os sinais moderados terão mais facilidade em ser ultrapassados, claro, sobretudo em pessoas que não tenham antecedentes e sobretudo que tenham à sua volta ecossistemas amigáveis: a comunidade, a família, a escola. O problema aqui é que supostamente também as famílias e os professores estão em sofrimento (como aliás este estudo demonstra pelo lado dos professores), o que dificulta a recuperação. Este estudo, mais do que fazer diagnósticos ou mesmo avaliações de problemas, pretende indicar pistas para a ação e estas estão a ser tomadas com caráter imediato. Todos os agrupamentos nacionais e diversas estruturas do Ministério da Educação e da Saúde têm já este relatório e esperamos que constitua um motivo de pleno debate. Vamos já em junho fazer o segundo webinar, de três webinares previstos com os psicólogos que trabalham nas escolas, com os diretores das escolas (que surgiram como uma importante peça a facilitar ou dificultar o bem estar psicológico no ecossistema escolar) e com os professores coordenadores de educação para a saúde. Prevê-se uma ação com diretores de agrupamentos, com psicólogos nos agrupamentos e com professores coordenadores de educação para a saúde, em setembro e outubro, incentivando-os a identificar as circunstâncias do seu agrupamento com apoio do relatório e a escolher o tipo de percurso para lhes fazer face. Este processo vai ter o apoio da nossa equipa Aventura Social no Instituto de Saúde Ambiental Instituto de Saúde Ambiental (ISAMB)/ Faculdade de Medicina, da Universidade de Lisboa também da OPP  – Ordem dos Psicólogos Portugueses, das Academias do Conhecimento da Fundação Calouste Gulbenkian e, claro, da DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), DGE (Direção-Geral da Educação) e do PNPSE (Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escola). Todos foram parceiros neste estudo. E, o que é muito importante, temos um enorme apoio e incentivo do ex- Secretário de Estado Adjunto e da Educação, e atual Ministro da Educação, o professor João Costa.

A ansiedade em relação à escola e aos testes parece ter um alívio no 5º ano – perceberam que as crianças ali nos 10/11 anos são as mais otimistas e confiantes. Há alguma explicação?

Quanto mais velhos pior, com o tal pico que falei no 2º ano e no 8º. Os anos sem exame final são menos stressantes. De acordo com o estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC) de 2018 –  o último que ja tem resultados sisponiveis – em www.aventurasocial.com – e todos os outros estudos anteriores do HBSC (realizados em 2014, 2010, 2006, 2002, 1998), os alunos portugueses são, no espaço europeu, dos que mais stressam com a escola. Estudos transversais como estes não permitem estabelecer “causalidades”, mas eu bem me esforço por contribuir para que a avaliação seja uma ratificação das aprendizagens e não o objetivo último da aprendizagem. Se se aprende (apenas) para ter notas, o peso das notas é insustentavelmente pesado e angustiante.

Sendo os alunos do 5º ano os mais otimistas, quer dizer que se sente o stress no 1º ciclo? Os testes e as classificações são demasiado exigentes nas crianças mais novas?

Não podemos tirar isso deste estudo. Os alunos do 2º ano estão mais penalizados, mas realmente desde que entraram para a escolaridade ainda não tiveram serenidade. A avaliação da pré e do 1º ciclo (até ao 4º ano de escolaridade) foi feita pelos professores – têm dificuldade em ler suficientemente para preencher questionário. E note-se que os professores também andam stressados, o que pode influenciar as suas avaliações dos alunos. Aliás, veja-se que, contrariamente aos outros ciclos, onde as meninas apresentam resultados menos bons, na pré e no 1º ciclo são os meninos que se apresentam de modo menos favorável. Como lhe disse não podemos aqui apontar causas, mas a mim parece-me mesmo que os professores (que no 1º ciclo preencheram as avaliações deste estudo) são mais sensíveis aos problemas que se exteriorizam ( por exemplo, problemas de comportamento) do que problemas que se interiorizam (por exemplo, tristeza). Têm de gerir uma aula onde a exteriorização é mais impeditiva e causa mais turbulência

Os rapazes mostraram mais indicadores de bem-estar do que as raparigas. Encontram explicação? Que estratégias se podem implementar?

É um clássico… Desde 1998, pelo menos, – desde que Portugal participa no estudo HBSC com a Organização Mundial de Saúde, que eles próprios, em grupos de discussão, acham isso. O otimismo dos rapazes e a tendência a interiorização internalização de sentimentos por parte das meninas terá raízes biológicas em questões hormonais, certamente, mas tem também séculos de uma cultura que assim sugere e facilita.

Contacta muito com crianças e adolescentes há 30 anos. Não havia smartphones, não havia internet, muitos pais tinham empregos mais estáveis. O que é que a deixa mais otimista e, por outro lado, mais apreensiva com as crianças e jovens de hoje?

O imenso acesso à escola, à cultura, à aprendizagem e as tecnologias de informação provocada pelo desenvolvimento tecnológico e pela democratização do ensino enche-me de orgulho nacional.  Com as tecnologias vêm alguns riscos a não desprezar, mas com os quais devemos aprender a viver: o excesso e a dependência sobretudo, porque, tal como a ignorância e o analfabetismo, estreitam o nosso leque de interesses e nos fazem perder um horizonte de oportunidades.  No caso das tecnologias, nomeadamente com os jogos online, há também a registar sinais funcionais físicos por exemplo ao nível do tempo de reação cerebral, que ajudam a achar o “resto da vida” lento e sem desafio. Há ainda efeitos ao nível do sono, da alimentação, do sedentarismo, dos desvios posturais, dos olhos e ouvidos…

Um estudo divulgado esta semana mostra uma melhoria no hiato de resultados académicos entre os alunos mais pobres e os restantes. Parece-lhe real este esbater das desigualdades – e que possa ser medido pelos resultados de provas – quando sabemos que uma em cada cinco crianças em Portugal vive em risco de pobreza, as atividades lúdicas podem ser dispendiosas para os pais, os ATL custam dinheiro às famílias… Não pode ser uma ilusão?

A pobreza dificulta tudo, o acesso às coisas, a disponibilidade para usufruir delas, etc… Vários estudos feitos a partir do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC) mostram Portugal como um país relativamente pobre, mas não proporcionalmente desigual. A possibilidade de a escola servir de alavanca social é da maior importância para o acesso de todos a uma vida com menos dificuldades económicas. Se imaginarmos como era há 50 anos, um longo percurso foi feito, sobretudo no aumento da escolaridade dos pais dos alunos. Veja-se por exemplo o programa Novas Oportunidades. Foi incrível, mesmo quando nos comparamos apenas com 1998, que foi quando começámos a ter dados comparáveis com este estudo feito com a OMS.

Muitas das gerações mais velhas de portugueses ainda começaram a trabalhar em crianças, trabalhavam de manhã e iam para as aulas depois – os que iam. Muitos, muitas vezes as raparigas, não puderam progredir estudos ou ir para as profissões que queriam. Somos hoje um país diferente. Que significado gostava que tivesse este Dia da Criança e em que gostaria que estivéssemos melhor?

Caramba, é verdade mesmo e é outra das coisas que me enche de orgulho. Eu, que mesmo “antes” era uma privilegiada, não gostava nada de viver num país pobre e cinzentão em que tinha acesso ao que queria, mas os meninos à minha volta não. Isso sempre me encheu de um misto de tristeza e sensação de injustiça. Definitivamente somos hoje um pais diferente. Espero que não se venha a ouvir muito aquele discurso de que antigamente “é que era bom” – era bom para muito poucos, e o facto de eu ter sido um deles não me consola nada.  E depois havia todo aquele controlo social que dava muito má vida. Tudo parecia mal… o controlo social fazia-se nesse espaço do “parece mal”. Era terrível.

Tem boas memórias de dias das criança de quando era pequena? É  certo que hoje é uma data simples de resolver com um brinquedo. O que gostava que estivesse presente na cabeça dos pais?

Tenho muito boas memórias de quando era criança pequena. Sobretudo da parte em que andava sempre muito suja no jardim a brincar com a terra, a enterrar coisas e a cair da bicicleta com o meu irmão. Gostava dessa sensação de liberdade, de subir às arvores do jardim, de passar a tarde num árvore a ler e lanchar lá em cima  (como “nos Cinco”).  Mas depois via os outros meninos “cá fora” a olhar, andrajosos, com fome e sem ir à escola,  e isso sempre me deu um grande murro no estômago, desde miúda. Eram boas memórias sim, mas para poucos. Para os pais atuais, como refleti no último livro Adolescentes, aconselharia que não deixassem de viver a sua vida pelos filhos. Temos uma geração de pais muito implicados na vida dos seus filhos, que foram elevados como que a um “ produto de luxo”,  e um excesso de proteção não deixa desenvolver a autonomia, não ajuda a responsabilização. E, além disso, um excesso de esforço implica a presunção de um “retorno”, quando o que damos aos filhos tem de ser sempre e completamente a “fundo perdido”.