Ucrânia. Críticas fervilham entre militares russos e “falcões”

Soldados, jovens oficiais e veteranos estão furiosos. Alguns queixam-se da corrupção, outros até exigem que o Kremlin seja mais duro. “A legitimidade da existência da chamada ‘Ucrânia’ já não é questionada”, queixou-se “Strelkov”, ícone da extrema-direita russa.  

O descontentamento é cada vez mais notório entre oficiais russos. Não que as críticas venham de peaceniks – termo pejorativo para os pacifistas, duramente reprimidos pelo regime de Putin – chocados com a brutalidade da invasão. Mas chegam sobretudo de “falcões”, nacionalistas russos que querem que o Kremlin seja ainda mais duro, forneça melhor equipamento e armas às tropas, que não deixe que sejam desviadas por militares corruptos, exigindo que se declare guerra e uma mobilização geral. E estão furiosos por Putin ter abandonado os seus sonhos mais ambiciosos, focando-se no Donbass – em particular Severodonetsk, metade da qual já foi tomada pelos russos, admitiram autoridades ucranianas – e não em conquistar Kiev. 

“A legitimidade da existência da chamada ‘Ucrânia’ já não é questionada”, queixou-se Igor Girkin, um antigo agente do Serviço Federal de Segurança (FSB,  em russo), no Telegram, esta segunda-feira. Atrevendo-se a criticar um discurso do próprio ministro do Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, notando que ter Donbass como prioridade, e não a Ucrânia inteira, implicava “esquecer a desmilitarização e desnazificação deste território”. 

Não surpreende o descontentamento dos “falcões” em Moscovo. Após semanas de avanços lentos ou nulos no Donbass, a ofensiva russa só conseguiu ganhar ritmo recentemente, em Severodonetsk. E é uma cidade que costumava ter apenas cem mil habitantes, considerada de pouco valor estratégico, na prática oferecendo apenas a possibilidade de Putin se gabar de ter conquistado Lugansk inteiro.

Entre militares russos, discute-se cada vez mais a corrupção nas forças armadas, cujo preço é pago pelas tropas. “Vemos muitas discussões sobre coletes à prova de bala”, frisou Olga Ivshina, uma repórter da BBC que se tem dedicado a investigar o estado das forças russas, falando ao Ukrainecast. “Muitos não recebem os coletes à prova de bala que era suposto receberem, ou vêm sem as placas blindadas. Mas se fores à versão russa do Ebay, encontra-las lá à venda”, explicou, dando outros exemplos, incluindo equipamento tão crucial como torniquetes e medicamentos. “Alguns soldados sentem-se abandonados”. 

“Falcões” contra o Kremlin Já as baixas entre oficiais juniores russos têm sido brutais, revelou o ministério da Defesa britânico. Têm sido pressionados por superiores a ir à linha da frente, de maneira a supervisionar as suas forças, compostas sobretudo por recrutas inexperientes. “A perda de uma larga proporção da geração mais jovem de oficiais profissionais vai provavelmente exacerbar os problemas existentes”, notava o relatório. mencionando “relatos credíveis de motins”.

Muitos oficiais mais velhos, veteranos e nacionalistas russos também não estão nada satisfeitos. “A dissidência de Girkin é emblemática da continuada viragem dentro dos círculos de entusiastas militares e antigos militares”, frisava um relatório do Institute for the Study of War. 

Girkin, visto como ícone entre os nacionalistas russos, veterano da guerra na Transnístria, Bósnia – quem sabe se não se cruzou com militares portugueses, que tiveram aqui a sua primeira grande operação pós-colonial – e Chechénia, usaria o nom de guerre “Strelkov” no Donbass, cruzando a fronteira em 2014. Liderava meia centena de combatentes, numa incursão vista como o gatilho dessa guerra. E, por extensão, da atual.  

Strelkov destacou-se no cerco a Sloviansk – que foi reconquistada aos separatistas pela Ucrânia, estando agora de novo na mira dos russos, sendo considerada crucial para abastecer forças ucranianas no Donbass – e daria por si como líder militar dos separatistas de Donetsk. Regressaria a Moscovo como alvo de um mandato de captura holandês, pelo abate do voo 17 da Malaysia Airlines.

Em março, Strelkov chegaria a ser descrito como o “novo alter-ego de Putin”, pela Bloomberg. Notando que ao longo dos últimos anos o Presidente russo se afastava dos seus conselheiros liberais, aproximando-se da visão de Strelkov, um saudosista do império russo, que tinha como passatempo participar em reconstituições históricas da guerra civil, mascarado de general do exército czarista. 

Contudo, se num primeiro momento a invasão da Ucrânia parecia o sonho de Strelkov, este claramente não está nada satisfeito. “Na linha da frente, há uma grave escassez de forças e meios para fazer evoluir até os sucessos táticos conseguidos com considerável derramamento de sangue”, escreveu o ícone nacionalista russo, que tem apelado a Putin por uma mobilização nacional. Queixando-se das “esperanças ilusórias” do Kremlin, que “nenhuma pessoa honesta e competente partilha”. 

Isso não significa que a máquina de guerra russa, ainda que mostrando uma capacidade inferior ao esperado, deixe de ser mortífera. Em Severodonetsk, o comandante militar ucraniano, Oleksandr Striuk, apelou aos civis presos na cidade, estimados entre os 12 e os 13 mil, que se escondam em caves, dada a escala dos bombardeamentos.

“A situação é muito grave e a cidade está basicamente a ser destruída brutalmente, quarteirão a quarteirão”, avisou Striuk esta terça-feira, citado pelo The Guardian.”Estão a decorrer ferozes combates, rua a rua”.