“Susan Sontag era de uma insegurança insuportável. Mas essa insegurança foi uma dádiva”

Depois de escrever a biografia de Clarice Lispector, foi convidado por um ‘comitezinho’ para fazer a de uma das mais influentes e carismáticas intelectuais do século XX, Susan Sontag. ‘Clarice e Susan são como duas esposas que eu tenho’, comenta Benjamin Moser.

Nascida a 16 de janeiro de 1933, Susan Sontag cresceu num meio provinciano. Casou-se aos 17 anos e foi mãe aos 19, o que não a impediu de, logo muito jovem, se tornar uma figura assídua e proeminente dos meios culturais e intelectuais de Nova Iorque. Os amigos contam que deixava o filho bebé, David Rieff, a dormir em cima de um monte de casacos. Depois, quando David tinha quatro anos e ela 23, deixou-o para trás e rumou à Europa. Não gostou de Oxford, mas ficou fascinada por Paris. Mais uma vez, defraudou as expectativas ao recusar seguir uma carreira académica. Também não precisou. Livros como a coleção de ensaios Contra a Interpretação (1966), Sobre a Fotografia (1977) ou A Doença como Metáfora (1978) fizeram dela uma autora altamente respeitada. E, por fim, um verdadeiro ícone americano.

Para escrever a biografia daquela que muitos consideravam «a mulher mais inteligente do mundo» – Sontag – Vida e Obra, publicada em Portugal pela Objectiva – Benjamin Moser leu dezenas de milhares de páginas e realizou centenas de entrevistas por todo o mundo, do Havai a Estocolmo. O seu trabalho foi recompensado com o prémio Pulitzer de biografia em 2020. Encontramo-nos com o autor, que apesar de ser norte-americano reside em França, numa passagem sua por Lisboa. E conversamos em português, uma das oito línguas que Bernjamin Moser domina com fluência.

Como aprendeu a falar português? Foi no Brasil?
Foi nos Estados Unidos, na verdade. Eu tinha estudado em França e voltei para os Estados Unidos para a faculdade. Tinha uma ideia juvenil de que queria conhecer a Ásia e fui fazer chinês. Foi terrível, senti que não tinha nenhum talento. Mas tinha de fazer algum idioma no curso e ao fim de duas semanas a única cadeira que tinha vaga era o português. Terminei fazendo português. Foi uma coisa da sorte que mudou a minha vida de uma forma que eu não podia prever. Estudei tanta coisa que hoje nem sei o que é. Mas o português grudou. Depois fui ao Brasil e acabei ficando algum tempo, não gostando muito, no início.

No Rio de Janeiro?
Sim.

Do que não gostou?
Fui na época do início do real, em que um real valia um dólar. O Rio era caríssimo, mais caro do que Londres, e eu não tinha muito que fazer. Oficialmente estava a estudar, mas não estudava nada. Não sou muito da praia, não conhecia ninguém, e acabei a ler Clarice Lispector no meu apartamento. Sozinho. Durante meses fiquei com essa obsessão. Conhece a obsessão Clarice? É uma coisa muito forte, não passa. A partir daí o português ficou na minha vida. Estou aqui contigo porque…

Um dia decidiu aprender chinês e não gostou.
Fracassei em chinês e vinte e não sei quantos anos depois estou aqui em Lisboa por isso. La vida da vueltas.

E a sua relação com Susan Sontag, como começa?
São troncos da mesma raiz, como disseram num fado a que eu assisti ontem. [risos] Eu tinha 25 anos quando comecei a biografia da Clarice. Foi uma necessidade. Fiz sem editora, sem contrato, sem nada. 

Por sua conta?
Dediquei cinco anos a isso. Depois o livro ficou um sucesso inesperado. E passei a ser uma pessoa mais conhecida no mundo da biografia. Uns anos depois, estava no Brasil e recebi um email de uma pessoa que eu vagamente conhecia que dizia que um comitezinho de pessoas – o filho da Susan, o agente, o editor – tinham lido várias biografias e acharam que eu seria a pessoa perfeita para fazer a da Susan Sontag. Quando comecei a da Clarice eu não sabia o que era uma biografia – as dificuldades, o tempo, o dinheiro que ia gastar, as brigas que tem o partido A, B, C e D e você está no meio de tudo isso. Com a Susan já sabia…

No que se ia meter.
É um perigo, uma biografia é uma coisa muito forte, porque mexe com as coisas mais íntimas. Até se for o Luís de Camões, que não vai mandar um email para você, mas tem o professor tal que não gosta do outro, é uma geografia de partidos e de opiniões, uma coisa muito difícil, que esgota a pessoa. Mas ao mesmo tempo pensei: ‘Eles têm razão, eu sou a pessoa perfeita para fazer esse livro’. Eu não seria a pessoa perfeita para fazer um livro sobre Silvio Berlusconi – estou a inventar um nome ao acaso. Não sei nada sobre isso, não é o meu mundo. Mas em relação à Sontag eles tinham razão.

Sentia afinidade?
Muita. Não é uma coisa estrangeira para mim, não é uma língua que eu tivesse de aprender. Os meus interesses estão ali. Os meus interesses pela filosofia linguística, que eu tento disfarçar um pouco – ponho muita fofoca para as pessoas não se darem conta de que realmente se trata de filosofia linguística, porque se não ninguém teria lido –, a história da cultura moderna, a história dos Estados Unidos, a história da sexualidade, a história do feminismo, a relação da literatura com a política, tudo isso me interessa. Então aceitei. E foi uma montanha-russa.

O que já sabia sobre Susan Sontag na altura em que lhe pediram para fazer a biografia?
Depois de fazer uma biografia, você se dá conta de que não sabia nada, porque o biógrafo sabe mais do que a própria pessoa. Até quando leio um email meu de 2012, nem sei o que é, posso tentar lembrar. Mas o biógrafo tem de ter tudo isso presente. Antes eu tinha lido basicamente as coisas que todo o mundo tinha lido. Mas é muito pouco em comparação com a obra dela. É uma gotinha de água no mar. Eu sempre achei uma pena as pessoas só conhecerem umas poucas coisas dela, porque coisas como as ‘Notes on Camp’ ou ‘Contra a Interpretação’ são interessantes mas para mim o conjunto é mais interessante. E não há outra vida, eu ia dizer vida americana, mas acho que não há vida no século XX mais abrangente do que a de Susan Sontag. Todos os assuntos imaginários estão ali. Então foi um desafio muito grande, mas tive muito prazer em fazer esse livro, em aprender tudo isso.

Acho que há um consenso entre os biógrafos acerca da importância da infância, que define muito do que a pessoa vai ser. A de Sontag é muito marcada pela perda do pai?
Clarice falou que nada do que aconteceu a ela depois dos 18 anos importava para o resto da vida. Você casa, tem filhos, muda de cidade, mas a personalidade está formada. Sim, o facto mais importante é a perda do pai, mas também a menina infeliz numa província qualquer com ninguém ao redor que entenda ela e os interesses dela, que acha na farmácia – não sei se em Portugal se vendia nas farmácias essas séries de livros baratos, do género ‘os cem maiores clássicos da literatura universal’, esse tipo de coisas.

Talvez nos correios, nas farmácias não.
Ou nos quiosques, no Brasil se vendia com os jornais. Ela achou essa lista dos cem livros clássicos que todo o mundo tem que ler. E leu todos os livros da lista, sem nenhuma orientação da escola, que era uma escola ruim.

Há pouco tempo foram editados os diários da juventude, Renascer, onde aparecem listas de livros que ela queria ler. É quase vertiginoso como é que uma pessoa tão jovem já anda a ler aquilo tudo.
E as que aparecem na versão publicada são muito abreviadas. Nos 100 volumes de diários que estão nos arquivos essas listas são muito maiores. Ela entendeu que era pelos livros, pela arte, por uma coisa maior do que a realidade banalzinha que ela vivia, que ia salvar a vida dela, que ia encontrar um caminho. E foi exatamente isso que aconteceu. Não era um interesse à toa de ler, não, era uma campanha militar, quase, uma coisa super-organizada. Era uma vontade de entender o mundo pela arte, que ia desde coisas muito básicas, como quem era Mozart, até poder muito jovem desenvolver teorias. Os diários mostram que ela tem ideias sobre Schopenhauer quando tem 13 anos. Não é só uma menina inteligente, é muito mais do que isso.

Acha que essa vontade de querer saber tudo não poderia resultar de alguma insegurança de ter nascido num meio provinciano?
Não sei, acho que um meio provinciano é muito bom. Nas grandes capitais, ninguém é de lá. Ninguém é de Paris. Sim, tem gente de Paris, mas quem vai para Paris, quem vai para Nova Iorque são justamente os meninos inteligentes da província. Isso é Nova Iorque 100%. Raras vezes são as pessoas de Nova Iorque que mandam na cidade. Que é uma cidade que atrai.

Um íman.
Um íman. E exerce a sua atração sobre Susan. ‘Estou no meu estado pequeno, chato, onde ninguém pensa e todo o mundo vai à igreja, eu vou fugir daqui, vou para a capital, onde vou achar as pessoas que se parecem comigo’. E penso que faz isso com um desejo de salvar a parte física, corporal, pela cabeça. Sei que é uma coisa um pouco estranha, mas quer dizer o quê? Ela estava extremamente insegura no corpo dela, basicamente por ser lésbica, o que ela sabe desde muito jovem, mas também por uma insegurança física, e na cabeça não estava insegura. Era a menina que mais sabia, que todos os professores adoravam, que fez uma carreira muito jovem, esplendorosa, que sabia tudo, que ninguém contradizia, porque sabiam que era a mulher mais inteligente do mundo. A cabeça dela era uma fortaleza, enquanto o corpo tem o destino de todos os corpos. Todos temos esse conflito, mas nela ficou uma coisa sísmica, vulcânica.

Ela foi mãe muito nova…
Ainda não tinha 20 anos.

Podia ser – e em princípio seria – uma prisão. Mas curiosamente nunca a impediu de fazer aquilo que queria.
Nunca. E foi muito criticada por isso. Esperava-se dela que terminasse a faculdade e talvez que fosse professora, uma coisa assim. Mas ela não quis esse destino, largou o filho de quatro anos, deixou-o com o marido.

E foi para Inglaterra, para a Universidade de Oxford.
Numa época em que não tinha comunicação, porque se viajava de barco, não tinha whatsapp, não tinha nada. Era um afastamento muito maior do que seria hoje. Mas ela pagou um preço muito alto por isso. E o filho também. Mas ela fez o que queria.

Sontag tinha uma ideia idealizada da Europa e da cultura europeia que não correspondeu ao que viu em Inglaterra. E em Paris?
Todos nós, os que vimos do Novo Mundo, temos essa ideia da Europa como raiz da cultura e da civilização. Acho que nenhum português pode imaginar como uma coisa como Alfama é exótica para nós, ou uma catedral. Ela fica apaixonada por Paris, como tanta gente fica. ‘Finalmente cheguei à capital’ – capital artística, científica, académica, de moda, de sexo, de perfumaria, de tudo. Ficou encantada. E acabou por virar um símbolo nos Estados Unidos, era a pessoa mais parisiense que tínhamos.

E o que conservou de americano no meio disso?
Tudo. Por exemplo, a ambição enorme.

A vontade de triunfar?
E de fazer tudo, de ir a todo o lado. Isso é muito americano. Lembre-se que ela vive no auge do império americano. Hoje em dia é totalmente diferente. Mas ela era muito consciente do poder dos Estados Unidos, da língua inglesa, e também do lado violento, cruel dos Estados Unidos – o Vietname, o Iraque, a tortura, todas as coisas horríveis. Acho que a personalidade extrema dela foi um reflexo de certa forma dos Estados Unidos, que é um país extremo. Eu vivo na França, é um país onde não acontece nada há muitos anos, tiveram uma eleição agora e o Presidente até se esqueceu de fazer campanha. Nos Estados Unidos acontece demais.

Um momento dramático da vida dela é a doença, que ela descobre por acaso quando vai fazer um exame no lugar do filho. Nota uma mudança de perspetiva ou de atitude antes e depois da doença?
Ela aos 42 teve esse cancro que quase a matou. E realmente não deveria ter sobrevivido, era uma coisa que não tinha cura naquela época. Mas ela achou uma cura, foi para França, e sobreviveu, quase por milagre. É muito dramático porque ela sabia que estava condenada. Até se despediu das pessoas. Mas consegue regressar do mundo dos mortos e escreve esse livro fenomenal que se chama A Doença como Metáfora, em que ela em nenhum momento fala: ‘Eu tive cancro’. Mas sente-se uma energia latente nesse livro que não se consegue identificar.

É curioso que Freud, um autor que Sontag leu e assimilou, escreveu A Interpretação dos Sonhos. E ela escreve Contra a Interpretação, quase uma negação de Freud, embora ela própria estivesse sempre a interpretar e a teorizar. Até sobre a própria doença!
Freud era o grande deus intelectual de várias gerações – Freud, Marx e outros que escreveram essas obras imensas, complicadas, mas que deram a chave da sexualidade, da economia, da civilização, da política, da cultura. Para toda essa geração essas figuras foram coisas tão dominantes que chegaram a ser opressivas.

Sontag queria ‘matar o pai’?
O problema é que essas interpretações que em Freud são fascinantes se vulgarizaram. Imagine: ‘Essa mesa não é uma mesa, é o útero da sua mãe’. Então, para fugir dessas interpretações, houve um movimento na direção da sensualidade pura, de apreciar a música porque simplesmente gosta. Isso infelizmente foi muito longe, resultou nesse consumismo de hoje, em que nada tem significação. Se você gosta, gosta, se não gosta, tudo bem.

Mencionou a questão da homossexualidade. Ainda há dias uma pessoa amiga me dizia que era um disparate falar-se em escolha a esse respeito, porque a maioria das pessoas, se pudesse escolher, escolheria outra coisa. Acha que seria esse o caso de Susan Sontag? 
Ela era obcecada por essa questão. Quando você tem 12 anos, a última coisa que quer é ser gay. Mas não tem escolha, e é uma coisa que vai-se impondo mais com a adolescência. A palavra orgulho é um bocado esquisita para alguns. Orgulho de quê? De ser louro? De ser alto? De ser baixo? Orgulho de uma coisa que não se escolhe? Não, é o orgulho de, apesar das dificuldades, da discriminação, da dúvida, ter-se afirmado, ter-se realizado. Susan Sontag nunca teve isso, não queria que o caso dela fosse conhecido, embora todo o mundo soubesse, bastava olhar para ela. Isso leva a uma série de relações infelizes, de mentiras, de um esforço enorme de se proteger. E em certa medida tinha razão, porque havia coisas jurídicas, legais, discriminação nas próprias leis. Mas a cultura mudou radicalmente, e ela já estava um pouco velha nessa altura para poder desfrutar dessa liberdade.

Ela acaba por tornar-se uma celebridade e aproximar-se da alta sociedade de Nova Iorque. É convidada para festas elegantes, vai a restaurantes de luxo, almoça com a Jackie Onassis, visita Marella Agnelli no seu apartamento… Não via contradição entre os ideais de esquerda, revolucionários, e o facto de movimentar-se nesses meios dos ricos?
Não. Acho que ela viu a diferença entre uma pessoa que tem uma casa legal ou muito dinheiro – e que pode ser uma pessoa boa ou ruim – e o sistema mais amplo, o sistema cruel que produz bilionários e gente que morre de fome na rua, que é a situação americana. Lembre-se que ela tinha passado boa parte da juventude em Hollywood. A mãe e a avó tinham ido para a Califórnia porque eram cinéfilas, e ela ficou fascinada por divas, como Jackie Kennedy mas também Greta Garbo, que foi o sonho de todas as lésbicas daquela geração. E acabou ficando a mais jovem nessa genealogia, porque as pessoas reagiram a ela da mesma forma.

Há sempre uma ideia de exigência, de aperfeiçoamento intelectual, que aliás transmite para a educação do próprio filho.
Homero aos três anos!

Mas ao mesmo tempo ela tinha defeitos muito vincados. Era capaz de ser muito cruel, maledicente.
Muito.

Era capaz de mentir, trair, enganar até os amigos.
Repare: se você tem de se aperfeiçoar é porque não é perfeito. É um ideal, uma meta. Eu gosto muito disso, aspirar à perfeição é possível. Mas também tem dias em que aspira à mediocridade… [risos] Então é melhor aspirar a uma coisa mais alta e não chegar lá inteiramente do que não aspirar. Todo o mundo tem defeitos. Os defeitos das pessoas extremas são extremos. E as coisas boas também. Sontag é uma pessoa humana em toda a sua extensão, positiva e negativa. É muito raro encontrar uma pessoa tão extrema.

Esses traços desagradáveis são incómodos para o biógrafo? Não se irrita com ela, não se aborrece um bocadinho?
Muito. Porque eu estou do lado dela, estou a torcer por ela, mas ela às vezes pode ser horrível. Viver com ela pode ser uma tortura. Se você é grosseira com todo o mundo, se você chinga todo o mundo e maltrata as pessoas, é ruim para as pessoas mas também é ruim para você. Porque tem o efeito de afastar as pessoas, de romper os relacionamentos, de ficar isolada, como ela ficou. Eu quero dizer: ‘Susan, escuta, filha, não fala isso’. Mas não posso, não dá.

Ela temia muito a solidão. Mas às vezes parece tratar mal as pessoas para ter a certeza de que gostam mesmo dela.
Era isso que ela fazia. Era um teste. ‘Eu vou falar isso, se você fugir é porque não se importa’. Então afastava as pessoas. Acho muito triste, porque ela tinha tanto carisma, tanto poder de atração, sob todas as formas – sexual, intelectual, artístico – que deixava as pessoas fascinadas. E, uma por uma, ela afastava-as. Criou uma solidão que não era necessária. E isso se deve também a ela ser tão famosa. ‘Eu posso mandar fulano tomar no cu porque sei que beltrano está aqui’. E esse outro até podia ser mais bonito, mais rico, mais divertido. É uma observação que eu tenho feito com outras pessoas. Podem-se permitir isso porque sempre têm uma fila enorme de admiradores interessantes que os querem conhecer. Pensam que nunca vão ficar sozinhos. Mas é um falso luxo.

Susan Sontag era inteligente, atraente, admirada, respeitada. Apesar disso, e de ter alcançado tanta coisa logo desde muito cedo, vivia sempre insatisfeita. E tinha aquela noção estranha de que era uma fraude.
Isso é bastante comum em pessoas que tiveram muito sucesso. Era uma pessoa com uma insegurança insuportável. Eu, que fui ‘casado’ com ela tanto tempo, pergunto muitas vezes: ‘Tanta insegurança para quê?’. Mas ao mesmo tempo a insegurança foi uma dádiva, uma riqueza. 

Porque a fazia querer sempre mais?
Fazia o motor se animar. Se ela estivesse contente consigo mesma não teria feito tudo o que fez – no teatro, na política, nos romances, todas essas coisas que ela não tinha de fazer mas fez porque queria sempre mais. Acabou sendo Susan Sontag, e não é pouco.

Para quem faz a biografia de alguém que morreu há pouco tempo deve haver uma abundância de material gigante.
Sim.
Há um bocado dizia-me que só os diários são 100 cadernos. Depois tem a obra toda, as pessoas que a conheceram e estão vivas, os artigos de jornal, etc., etc. A abundância de material às tantas torna-se um problema para o biógrafo?
Claro. Atrapalha. Este livro já é grande, mas podia ter sido cinco vezes maior. A informação só é boa se for organizada, se tiver uma narrativa. Fiz centenas e centenas de entrevistas, cada transcrição são oitenta páginas. Eu utilizo duas, três frases. Fui até Estocolmo, até Honolulu para fazer entrevistas. A pessoa deu-me duas frases que posso usar. Por isso é que eu digo sempre que a organização é a chave da biografia. Se não a pessoa afoga-se. Este foi um projeto tão grande que eu achei: ‘Que pena que eu vou morrer com só 60% desse livro, tem tanta coisa interessante mas ninguém vai saber’.

Como escolhe o que entra e o que não entra no livro? Muitas vezes as pessoas perguntam: ‘O que me interessa se ela usava cuecas azuis claras?’.
A cueca azul não interessa. Isso eu deixo fora. Tem muitos assuntos que eu não toco muito no livro, porque os meus interesses são bastante específicos.

Não tentou meter tudo lá dentro.
Não, porque é insuportável para mim e para o leitor. Aliás, se você botar tudo não vai ter leitor. Tem muita gente que escreve: ‘O José acordou às 9 da manhã e tomou um café’. Não interessa. Eu quero o âmago, quero o centro emocional, quero descobrir o motivo de a pessoa ter feito o que fez. Acho que eu consigo porque sou uma fera na redação, tiro muita coisa que queria ter. Mas quando você relê, percebe quando as coisas que não entram mesmo, onde o ritmo fica um pouco mais lentinho… Mas sempre tem pessoas que criticam, porque tem muito disso não tem suficiente isso. É inevitável.

No final da vida ela teve arrependimentos grandes?
Sim. Achava que tinha desperdiçado muito tempo sendo infeliz. Que devia ter sido mais feliz enquanto estava com saúde, enquanto estava com o sol raiando. Muita gente fica nessa situação de não aproveitar a vida enquanto está aqui.

No funeral há aquele conflito. É o que o Benjamin dizia…
Os dois campos.

É quase como dois adeptos do mesmo clube à pancada.
Por isso é que falei de Luís de Camões. Você pode achar que está morto há não sei quanto tempo. Mas as pessoas podem-se odiar por terem uma opinião diferente sobre ele. E muito pior se for a sua mãe, sua companheira, sua tia… É um dos perigos da biografia.

Essa divisão espelhava a vida dividida dela e os conflitos que suscitava?
Claro, ela era uma pessoa sempre polémica, controversa, difícil. Mas o mais interessante é que ela previu 30 anos antes o que se ia passar. Em Sobre a Fotografia descreveu o que ia acontecer com o corpo morto dela, o conflito sobre quem tem direito a esse corpo, quem tem direito a vesti-lo, quem tem direito a enterrá-lo, quem tem direito a tirar fotos do cadáver. É muito louco, mas o livro descreve exatamente o que aconteceu. Não sei explicar isso, acho que os grandes escritores às vezes têm essa capacidade de premonição, de serem profetas, de serem dotados de uma visão que o resto do mundo não tem.

Os atores dizem que é difícil despirem um papel. Que quase têm de fazer o luto. Com um biógrafo também acontece isso?
A cabeça da Clarice passou na minha e a da Susan também. Porque é como um casamento. Não termina necessariamente quando o livro fica publicado. Terminei este livro há três anos e estou a falar dele agora. Não é como se fosse alguma coisa do meu passado. Clarice e Susan são como duas esposas que eu tenho. E, quando estou uma semana a prestar atenção só a uma, é como se a outra estivesse batendo na minha porta.