Esta palavra saudade…

Saudade continuará a ser a ‘palavra amarga e doce, estrangulada na garganta, palavra como se fosse, o silêncio que se canta’. E permanecerá sempre viva nos nossos corações, até ao final dos tempos

Esta palavra saudade/Sete letras de ternura/Sete letras de ansiedade/E outras tantas de aventura…». 

Começa assim o poema que Ary dos Santos e César Oliveira escreveram, e o conceituado Nuno Nazareth Fernandes musicou, para a nossa grande Simone de Oliveira interpretar de uma forma muito própria, como só ela sabe fazer.
‘Saudade’ é uma palavra apenas nossa, difícil de explicar exatamente a um estrangeiro, algo nostálgica, associada a lembranças de um passado feliz ou de alguém que nos marcou pela positiva. 

É algo muito forte, capaz de modificar os nossos planos, que mexe connosco e nos pode levar a fazer opções, por vezes profundas, na nossa vida. 

A história que hoje partilho é um bom exemplo desse sentimento. Conta-se, em Setúbal, já lá vão uns anos, que dois médicos no começo da carreira partiram para os Estados Unidos à procura de melhores condições no campo profissional. 

Um deles teve uma excelente adaptação, integrando-se no meio médico sem problemas, progredindo na carreira, como não era possível em Portugal. Bem cedo ficou fascinado com as novas tecnologias e com a forma de trabalhar dos americanos – e por lá se foi mantendo, sem vontade de regressar ao seu país. 

O outro, pelo contrário, teve mais dificuldades. Dia após dia ia sentindo a falta de tudo, daquilo que cá deixara, da sua terra, das suas raízes, da família, dos amigos e do seu estilo de vida. 

Esta nostalgia foi aumentando sempre, de tal modo que, numa das praças da cidade – que tinha de atravessar a pé a caminho do trabalho – já via a Praça de Bocage! A tristeza apoderou-se dele, o trabalho não compensava e o desânimo obrigou-o a regressar. 

Dito de outra forma, no primeiro caso prevaleceu a razão, no segundo foi a saudade que falou mais alto.

Nos dias de hoje, não sei se a história acabaria assim. Os tempos mudaram e a sociedade vai-nos impondo outras regras às quais nos temos de adaptar, com mais ou menos dificuldade. Esta palavra ‘saudade’, para alguns, pode mesmo não fazer sentido – e aqueles que ainda a invocam podem ser considerados ‘saudosistas’ por uns e até ‘piegas’ por outros.

Já lá vai o tempo em que a família tinha outro peso e era um pilar essencial que ninguém ousava contestar. 
Aliás, o conceito e a estrutura familiar são bem diferentes no momento presente. Os pais, ocupadíssimos com o trabalho, não têm tempo suficiente para acompanhar os filhos, deixando-os mais desamparados; e os idosos são em muitos casos despejados em lares, onde aos poucos se vão desligando do mundo. 

A solidariedade deu lugar à competitividade sem limites e as convicções às conveniências. 

A vida resume-se ao dia de hoje – e o que passou a contar é o meu bem-estar, a minha realização profissional e os meus projetos. 

Não admira, pois, que o número de casamentos caia, o número de separações seja cada vez maior e os nascimentos diminuam, fazendo de Portugal um país com uma baixíssima natalidade. Para um jovem, a ida para o estrangeiro é hoje uma coisa natural. Constituir família não é prioritário – e deixar as suas raízes não tem qualquer importância. Lamentavelmente, o país, por não ter condições para os manter, como que os ‘empurra’ para fora, depois de os ter formado e investido a fundo na sua formação. Os jovens de hoje estão mais virados para o planeta, preocupam-se com o ambiente, com as reciclagens e com a gestão correta dos bens naturais, o que não se via na minha geração e é justo realçar. 

Na minha área também muita coisa mudou. O que se ganhou com os progressos e os avanços da Medicina de que tanto nos orgulhamos perdeu-se em humanidade – e sente-se a falta da tal palavra que conforta, da mão amiga que consola e de um sorriso que traga esperança. Os doentes são os primeiros a reconhecê-lo e a lamentar essa realidade.
Contudo, as boas recordações não desaparecem, ficam para sempre e devem ser lembradas com a saudade indestrutível dos momentos felizes da nossa vida.

Saudade continuará a ser a ‘palavra amarga e doce, estrangulada na garganta, palavra como se fosse, o silêncio que se canta’. E permanecerá sempre viva nos nossos corações, até ao final dos tempos. Como diz o poema, no qual me revejo: ‘Sete letras de encanto/Sete letras por enquanto/Enquanto a gente for viva’.