Quase 50% dos universitários sentem-se preocupados todos os dias

A preocupação sentida pelos estudantes universitários que iniciam o percurso académico é elevada. Principalmente, se tivermos em conta que quase 25% têm “uma preocupação intensa que não os larga”.

Esta é uma das conclusões de um estudo, da Universidade de Lisboa, que analisa o estilo de vida dos estudantes.

Quase metade dos jovens universitários que frequentam o primeiro ano da licenciatura ou do mestrado integrado (48,6%) estão preocupados todos os dias. Esta é uma das principais conclusões do relatório “Saúde e Estilos de Vida dos Estudantes Universitários à Entrada da Universidade”, a que o i teve acesso. O trabalho, enquadrado no Projeto HOUSE-Colégio F3, promovido pelo Colégio F3, da Universidade de Lisboa, contou com a participação de 1 143 alunos do 1.º ano de 17 Faculdades e Institutos da Universidade de Lisboa.

O estudo, dos investigadores Alexandra Marques-Pinto, Amélia Branco, Cecília Galvão, Joana Sousa, Luís Goulão, Rosário Bronze, Wanda Viegas e Margarida Gaspar de Matos, realizado entre os meses de março e maio de 2021, teve “como objetivo conhecer e estudar o perfil de saúde e estilo de vida dos estudantes do 1.º ano da Universidade de Lisboa” e “pretende caracterizar a população universitária em seis dimensões: saúde e bem-estar, substâncias psicotrópicas e potencialmente indutoras de dependência, atividade física, hábitos alimentares, questões físicas e emocionais, literacia e conhecimento”.

Cerca de 10% dos jovens inquiridos referem que raramente ou nunca estão preocupado. Por outro lado, um quarto menciona que anda ou fica várias vezes preocupados por semana (24,8%) e, relativamente à intensidade da preocupação, é esclarecido que mais de metade (55%) indicaram que quando ficam preocupados têm uma preocupação média que incomoda um pouco mas que não os impede de ir fazendo a sua vida, enquanto “cerca de um quarto dos jovens (24,5%) tem uma preocupação intensa que não os larga e não os deixa ter calma para pensar em mais nada”.

“Este estudo foi pensado e desenhado antes da pandemia, pela necessidade de estudar a saúde e estilos de vida dos ‘caloiros’. Com a pandemia limitámo-nos a adicionar algumas questões relacionadas com a pandemia e com a perceção do efeito da covid-19 nas suas vidas”, começa por observar Margarida Gaspar de Matos, professora e investigadora do  Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina, que leciona vários cursos de mestrado e coordena projetos de investigação na área da Saúde Mental.

“Com a pandemia, como se esperaria, as questões do impacto no bem-estar psicológico e na vida académica e social tiveram um especial papel, mas também as questões da alimentação, do consumo de substâncias, da literacia em saúde, sono, atividade física. Como este estudo se realizou pela primeira vez não há referente anterior, mas fica muito clara a necessidade, por um lado, de realizar este tipo de inquéritos de modo regular e, por outro lado, a necessidade de organizar serviços de prevenção e de promoção da saúde em meio universitário, como aliás vimos recentemente para alunos do básico e secundário”, acrescenta a professora.

Naquilo que diz respeito aos sintomas psicológicos, 6,8% dos estudantes disseram ter medo quase todos os dias – 45,5% pelo menos uma vez por mês e 47,7% raramente ou nunca –,  e 12,9% explicaram estar tristes/deprimidos quase todos os dias – 65,9% pelo menos uma vez por mês e 21,2% raramente ou nunca. Quase 12% (11,8%) admitiram sentir-se irritados quase todos os dias – 73,2% pelo menos uma vez por mês e 15% raramente ou nunca – e mais de um quinto (20,4%) clarificou que se sente nervoso quase todos os dias, com 67,7% a indicarem que estão assim pelo menos uma vez por mês e 11,9% raramente ou nunca.

As percentagens alinham-se com as apuradas noutros estudos recentes. A título de exemplo, no passado mês de janeiro, respondendo à pergunta de partida “De que forma a pandemia de COVID-19 afetou a saúde mental dos estudantes universitários e influenciou as interações sociais dos jovens e a sua experiência com o ensino online?”, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) publicou os resultados de uma investigação de 18 meses conseguida por meio de uma amostra de estudantes da Universidade do Porto.

Os investigadores – a equipa foi liderada por Ricardo Gusmão, investigador sénior do ISPUP, professor de Saúde Mental na FMUP, e coordenador do laboratório ‘Literacia em saúde mental, bem-estar, depressão e prevenção do suicídio’ –, concluíram que a satisfação dos universitários relativamente ao ensino à distância e ao modo como as interações sociais ocorrem diminuiu desde o surgimento da pandemia, sendo que o número e a gravidade dos sintomas depressivos aumentou significativamente entre outubro de 2019 (cinco meses antes do início primeiro confinamento, em território nacional) e março de 2021 (momento que corresponde ao segundo confinamento).

No entanto, este crescimento da sintomatologia depressiva moderada e grave não impulsionou a maior procura de ajuda por parte de quem mais precisava, tanto que mais de 50% dos 366 estudantes então inquiridos não recorreu a qualquer tratamento. “É conhecido que os cuidados de saúde primários não têm, em número suficiente, profissionais na área da saúde psicológica. Estamos a tempo do novo plano de saúde mental ultrapassar este problema, agora que a pandemia ajudou a tirar o ‘estigma’/tabu, à volta da saúde psicológica, e agora que este (e outros) estudos apontam esta necessidade”, diz Margarida Gaspar de Matos, salientando a quantidade de sintomas psicológicos relatados pelos inquiridos e frisando que “não havendo profissionais no SNS… estes serviços no ‘privado’ são incomportáveis para algumas bolsas”.

 “Também há serviços de apoio psicológico nas universidades, mas igualmente insuficientes. Isto para não falar da baixa atividade física e do excesso do tempo de ecrã que eles mesmos reportam, da dificuldade na gestão da qualidade da sua alimentação”, afirma a docente universitária que desempenha funções enquanto Coordenadora Nacional do Estudo da Organização Mundial de Saúde “Health Behaviour in School Aged Children” (HBSC).

No trabalho do Porto, foi também possível percecionar que a maioria dos estudantes relatou que dormia menos horas e deitava-se mais tarde do que antes do aparecimento do novo coronavírus. Estes hábitos de sono nocivos são corroborados pelo estudo da Universidade de Lisboa, pois compreendeu-se que um pouco mais de metade dos jovens dorme menos de 8 horas (59,3%) e cerca de um terço dorme 8 horas (32,3%) durante a semana. Aos fins de semana, um pouco mais de metade dos jovens dorme mais de 8 horas (54,6%). Algo igualmente espelhado pelas respostas que os inquiridos deram quando questionados sobre os problemas que podem aparecer devido à pandemia, sendo que grande parte indicou a ansiedade (84,5%), as preocupações (76%), a depressão (74,8%), os problemas na qualidade do sono (69,4%), conflitos familiares (61,8%) e as perturbações na quantidade do sono (57,4%).

Em fevereiro de 2021, em entrevista ao Nascer do SOL, o então presidente da Associação Académica de Coimbra, João Assunção, abordou os resultados do inquérito “Impacto do Confinamento na Academia de Coimbra”. Mais uma vez, a realidade obtida e aquela que é agora divulgada correspondem, sendo que a margem de erro do estudo mais antigo era de apenas 3%. Em Coimbra, a situação era particularmente grave porque 20% dos estudantes tiveram um ou mais pensamentos suicidas durante o confinamento. Tal como os colegas de Lisboa, não procuravam devidamente apoio especializado: 18% procuraram ajuda profissional e especializada durante e depois do confinamento, 40% não o fizeram pelo preço elevado e 21% por vergonha e falta de coragem.

 

Elevada exposição a ecrãs

Para além destes indicadores, o uso excessivo de ecrãs (89,9%), o comportamento sedentário (87,6%) e a má nutrição (58,4%) são outras preocupações suscitadas pelo inquérito. Quase quatro em cada dez estudantes (39%) indicaram o aumento de jogos online. No verão de 2019, a menos de um ano da identificação do primeiro caso de covid-19, em Portugal, o i teve a oportunidade de falar com jovens e adultos viciados em videojogos, assim como com profissionais de saúde que trabalham com os mesmos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esta adição é definida como “uma falta de controlo crescente ao longo de um período superior a 12 meses, em que se dá cada vez mais importância aos videojogos, mesmo com consequências negativas (falta de sono, irritabilidade, exclusão de outras atividades do quotidiano)”.

Pedro Hubert, coordenador do Instituto de Apoio ao Jogador, explicou na altura que não se podem colocar de parte fatores que atraem os potenciais jogadores: a predisposição individual (a tendência que temos para ser mais suscetíveis e vulneráveis a determinada coisa) e situacional (por exemplo, os videojogos estão na moda, são de fácil acesso) e a questão estrutural (os videojogos são construídos para se tornarem atrativos), e assim surge a dependência. “Ter dificuldade em deixar de jogar ou interromper o jogo”, “sofrer por não jogar”, “sentir, progressivamente, maior necessidade de jogar”, “deixar de comer para jogar ou tomar refeições em frente ao computador/televisão”, “evitar estudar ou não terminar tarefas exigidas”, “faltar à escola para não deixar de jogar”, “deixar de estar com amigos ou familiares para jogar” ou “dormir poucas horas para jogar mais tempo” são os sintomas que devem alarmar quem estiver perto destas pessoas.

Ainda que os números oficiais estejam a ser calculados pelo SICAD, o último relatório elaborado para o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e Dependências 2021-2030, em dezembro do ano passado, mostra que seis em cada 10 adolescentes jogam jogos eletrónicos nos dias de escola, e sete em cada 10 jogam aos fins de semana, feriados e férias, quando não têm aulas. De acordo com a informação presente no documento, “os videojogos têm vindo cada vez mais a ganhar terreno ao longo dos anos como atividade de lazer, seja online ou offline, mas especialmente online, desde que estão disponíveis as plataformas que permitem jogar com pessoas do mundo inteiro em simultâneo”.

 

Maioria não fuma, mas consome álcool e experimenta canábis

Quanto ao uso de substâncias, o novo estudo da Universidade de Lisboa revela que 6,4% dos participantes fumam todos os dias, 3,6% fumam pelo menos uma vez por semana, 5,6% fumam menos do que uma vez por semana e 84,4% não fumam. Estes valores vão ao encontro da conclusão de que o consumo de tabaco em Portugal Continental diminuiu nos últimos cinco anos, presente no ‘Relatório do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo da Direção-Geral da Saúde (DGS)’, veiculado no verão do ano passado.

Segundo o último Inquérito Nacional de Saúde, em 2019, 16,8% da população residente em Portugal Continental com 15 ou mais anos era fumadora, 14% dos quais fumadora diária. Em 2019, nos jovens com idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos, os cigarros foram o tipo de produto mais referido por quem já experimentou fumar – 29,3% – sendo estes seguidos dos cigarros eletrónicos – 22,2% –, do cachimbo de água (shisha) – 15% – e do tabaco aquecido – 4,9%.

No que concerne aos consumos regulares, aferidos quando se questiona os jovens sobre o que fizeram nos 30 dias anteriores ao inquérito, concluiu-se que 13,4% consumiram cigarros, 4,7%, cigarros eletrónicos e 3,7% tabaco para shisha.

Se aprofundarmos os números relativos ao álcool, a maioria dos jovens menciona já o ter bebido uma vez ou mais na vida (86,6%) e nos últimos 30 dias cerca de metade consumiu álcool uma vez ou mais (48,8%). As bebidas mais consumidas diariamente são os licores e o vinho, embora os licores sejam também a bebida mais frequentemente nunca usada. Mais de um quarto (28,9%) refere beber cerveja todas as semanas/meses, e nesta categoria todas as semanas/meses a popularidade do consumo dos licores é a mais reduzida.

A maioria dos jovens menciona não se ter embriagado no último mês (88,3%) e quatro em cada dez diz que nunca se embriagou (39,4%). Quando se fala do consumo de drogas ilegais no último mês, a maioria diz que não as consumiu (93,1%), enquanto 2,2% fizeram-no uma vez, 3,1% mais do que uma vez e 1,6% consumiu regularmente.

Em primeiro lugar, está a canábis (haxixe, erva, marijuana) com 33% dos universitários a consumi-la. De seguida, vêm o ecstasy (2,5%), os medicamentos usados como drogas (2,2%), o LSD (1,6%), os cogumelos mágicos (1,5%), a cocaína (1,2%) e os solventes e benzinas (tintas, vernizes ou colas, com 1,1%).

“As universidades não se querem substitutas dos serviços de saúde, mas tal como aconteceu no ensino pré-universitário, seria de equacionar por um lado medidas preventivas que apoiassem os jovens neste ‘regresso’ a nível da sua saúde psicológica e física, nomeadamente gestão emocional, atividade física, lazer não sedentário, nutrição e sono”, reforça Margarida Gaspar de Matos, adiantando que “os serviços encarregados destas medidas preventivas poderiam conter uma componente de atendimento inicial/aconselhamento e ainda de referência para serviços de saúde”.

“A organização de parcerias e o trabalho em rede podem ajudar a ultrapassar necessárias dificuldades financeiras, e gerir o ‘desperdício’ muitas vezes associado à dificuldade de gestão deste atendimento”, avança. “Estes jovens estão a transitar entre dois sistemas de ensino na altura da pandemia – o que, vimos no estudo com os mais novos – acarreta dificuldades adicionais e, além disso, em termos dos serviços de saúde estão a transitar dos serviços pediátricos para os de adultos”.

“É uma fase complexa do ponto de vista do desenvolvimento humano na sua relação com os contextos de vida, aqui complicada pela pandemia”, finaliza a psicóloga clínica e da saúde.