A legalização da prostituição: tudo é mercado

Eu não tenho um corpo, eu sou um corpo. A minha identidade inviolável é indistinta do corpo. Há uma diferença qualitativa entre uma pessoa e uma coisa. A Pessoa é um fim em si mesma e não um meio. Usar a pessoa como meio é uma despersonalização. 

por João Maurício Brás

Os libertários dividiram-se em duas grandes linhas; a tradição europeia que se tornou de esquerda, e a anglo-americana do hiperliberalismo económico. A ideia da liberdade individual absoluta e irrestrita, e de toda a interferência como um ‘mal’ é um dos seus dogmas. Ora, o enquadramento da liberdade, a liberdade exequível, os limites, criaram a cultura, a civilização e, claro, a sociedade. A defesa da dignidade da Pessoa é uma linha vermelha de qualquer sociedade decente. O paraíso não existe, mas compete-nos lutar para preservar o que mais vale e combater o que atenta a essas linhas vermelhas. Não tenho que adotar nenhuma posição religiosa ou moralista para defender essas linhas. Nem tudo se vende e compra como pretende a lógica liberal libertária, há limites éticos para a lógica do mercado. A legalização da prostituição, do lenocínio, e a ideia de trabalhador sexual é uma degradação da pessoa humana, há bens que não se podem comprar sem os degradarmos. O corpo e o sexo não são objetos de transação comercial. 

Eu não tenho um corpo, eu sou um corpo. A minha identidade inviolável é indistinta do corpo. Há uma diferença qualitativa entre uma pessoa e uma coisa. A Pessoa é um fim em si mesma e não um meio. Usar a pessoa como meio é uma despersonalização. 

Transacionar um serviço sexual mediante um preço é um atentado à dignidade humana. A sociedade liberal com a ideia do Estado axiologicamente neutro, a ideia de bem privatizada e remetida para a esfera pessoal redundou no culto falso dessa liberdade absoluta e na redução de tudo a negócio e contratos entre partes. A economia de mercado deu lugar à sociedade de mercado e o corpo é também uma mercadoria, e a prostituição é o degrau mais baixo dessa escala. 

A legalização da prostituição cai na falácia da falsa legitimação: ‘a profissão existe’, ‘a não legalização apenas fomenta o tráfico e a exploração’, ou ‘é um trabalho como outro qualquer’. A prostituição raramente é um livre escolha e não é um trabalho como outro qualquer. O corpo que é também a minha identidade é alienado como objeto a troco de dinheiro. O ser humano não é um bem transacionável, negá-lo é cair num relativismo aviltante onde nada vale mais que nada. 

A ideia de reduzir o mundo apenas a um quadro processual sobre o que é o não legal possibilita neste tema concreto a possibilidade de legalizar a degradação humana. Como referia Inês Fontinhas, o traficante passa a ser um empresário (ou é o Estado que fica com o negócio?) e as máfias que vivem do sexo deixam de ser criminosas para se transformarem em indústrias lícitas do sexo. 

Num ser humano o sexo define a personalidade, o nosso desenvolvimento sexual constrói as nossas estruturas psicológicas e cognitivas e vice-versa. A sexualidade é indissociável de uma totalidade que é o ser humano. 

Comercializar o sexo é distinto de prestar um serviço físico ou intelectual. O trabalho deve contribuir não só para a subsistência da pessoa, remunerar de modo justo o esforço produzido, como também realizar e gratificar, respeitando a dignidade e os direitos de cada um. No trabalho de prostituição a pessoa é paga para fazer com um estranho o que não faria muitas vezes em circunstâncias normais, e em nenhuma outro trabalho essa eventualidade é tão frequente. A prostituição é um dos graus mais baixos dessa conceção alienada de trabalho.