NOS Primavera Sound. Tudo em todo o lado ao mesmo tempo

Com um cartaz recheado dos mais incríveis e variados artistas, era inevitável que existissem sobreposições que fossem partir o coração dos espectadores.

A premissa do filme de 2022 Everything Everywhere All At Once, da dupla de realizadores Daniels, é que um grupo de talentosos indivíduos consegue estar presentes em diversos universos ao mesmo tempo. Se foram à presente edição do NOS Primavera Sound, certame no Porto que dá o tiro de partida da época de festivais, a única forma de usufruir a totalidade desta experiência era com este talento.

Com um cartaz recheado dos mais incríveis e variados artistas, era inevitável que existissem sobreposições que fossem partir o coração dos espetadores que se encontravam no evento.

Logo no primeiro dia existia uma grande decisão a tomar: ver o lendário Nick Cave ou uma das mais interessantes novas bandas de música de guitarra, os black midi.

O australiano Nick Cave, que vai regressar a Portugal em Setembro para o festival Meo Kalorama, é um nome familiar para os espetadores do NOS Primavera Sound, tendo também marcado presença em 2018, num icónico concerto, marcado por uma dramática chuva que ajudou a dramatizar a performance de músicas como Push the Sky Away, e, esta quinta-feira, não desiludiu.

Apesar de ter lançado dois discos desde o início da pandemia, o álbum duplo Ghosteen e o trabalho lançado juntamente com o seu colaborador de longa data, Warren Ellis, Carnage, o cantautor revisitou diversos momentos da sua longa discografia e ofereceu alguns dos momentos mais emotivos do festival no palco NOS.

No entanto, sensivelmente a meio do set de Cave, no palco Binance, estava a nascer um dos maiores furacões do evento.

“Nick Cave é um nome muito respeitado e conceituado, mas nunca ouvi muito o seu trabalho”, explicou ao i Leonardo Pereira, de 25 anos, que acabou por optar por ver a banda inglesa. “Ouvi muito os dois primeiros discos dos black midi, que considero serem excelentes e sinto que era uma melhor opção ver o concerto desta banda enquanto estão na ribalta e numa boa forma”, disse.

Os black midi, que entraram em palco ao som da música ‘Saoko’, da espanhola Rosalía, são uma das mais excitantes novas bandas a surgir no seio do movimento Post-Brexit Punk no Reino Unido e fizeram de tudo para confirmar esse estatuto. 

Com uma incansável energia, a banda de Geordie Greep (guitarra e voz), Cameron Picton (baixo e voz) e Morgan Simpson (bateria), a grande força que move os black midi e a sua música, que contaram ainda com o teclista Seth Evans (ao contrário de outros concertos, o saxofonista Kaidi Akinnbi não esteve presente no concerto), percorreu alguns dos principais temas dos seus dois primeiros discos, Schlagenheim (2019) e Cavalcade (2021), assim como algumas músicas do seu próximo trabalho, Hellfire, que será lançado no dia 15 de julho, impressionando não só pela agressividade e rapidez com que conseguem tocar, mas também pela mestria como conseguem encontrar melodias no centro do seu caos sonoro.

A consagração dos Tame Impala Desde que surgiram em cena, os australianos Tame Impala têm sido uma das maiores coqueluches da música alternativa graças ao sedutor psicadelismo das suas canções tingidas por uma inteligente sensibilidade pop, confirmando este estatuto com os seus dois primeiros discos, InnerSpeaker (2010) e Lonerism (2012).

Contudo, o mestre deste projeto, Kevin Parker, tinha ambições que não podiam ser alcançadas pelas restrições do rock psicadélico. Enamorado por sintetizadores e pelos seus interesses pop, os dois álbuns que se seguiram, Currents (2015) e The Slow Rush (2020), dividiram os fãs em dois segmentos, aqueles que se queriam manter fiéis às raízes alternativas do grupo e os que se entregavam a divertidas e orelhudas canções como ‘The Less I Know The Better’ ou ‘Borderline’.

Quando subiram ao Palco NOS, os australianos quiseram garantir que não existem “dois Tame Impalas”, mas sim um grupo que evoluiu e que percebe, melhor do que nunca, o que deve ser o seu espetáculo ao vivo.

Com um invejável jogo de luzes, uma produção visual impressionante e um enxame de confetes (que estragaram a tequila do líder da banda), Kevin Parker e companhia abriram o leque da sua discografia e apresentaram os mais variados sons aos seus fãs, com música a roçar o funk, synth-pop e a eletrónica, mas também o psicadelismo que caracterizou o início da sua carreira, com uma grande interpretação de ‘Runway Houses City Clouds’, do primeiro disco, com direito a um momento de “guitar hero” por parte de Parker.

Apesar de ainda dividirem espetadores, a banda de Kevin Parker confirmou ser uma das maiores bandas da atualidade e mostrou ter a capacidade de oferecer um dos mais completos concertos, tanto em termos de música, como de produção visual.

Enquanto a banda australiana hipnotizava os seus fãs, Caroline Polachek ocupava o palco Binance, por onde já tinha passado, mais cedo, Kim Gordon, ex-baixista dos icónicos Sonic Youth, para apresentar o seu primeiro disco a solo, No Home Record.

No palco Cupra foi ainda possível assistir a um belo regresso da banda americana DIIV, que esteve a apresentar o seu disco mais recente Deceiver (2019), depois de anos a combater com a dependência de heroína, apresentam-se agora mais atentos e maduros oferecendo um concerto competente.

Quem não teve a mesma sorte foi Sky Ferreira, artista norte-americana com ascendência portuguesa, que chegou 20 minutos atrasada e apenas tocou seis músicas, com a organização do festival a pedir à artista para interromper o concerto para não coincidir com o de Nick Cave. “Ok, bye I guess”, disse antes de abandonar o palco.

Mais cedo, a responsabilidade de inaugurar o maior palco do festival, o Palco NOS, esteve a cargo de Pedro Mafama, que disse ao i ter-se tratado de uma “enorme honra” tocar num festival e num palco onde já viu artistas que admira e respeita muito. “É muito bonito estar a pisar o mesmo palco que há pouco tempo atrás estava a olhar como fã”.

O músico de Lisboa esteve a apresentar o seu disco de estreia, Por Este Rio Abaixo, um trabalho onde reimagina o fado com influências de hip-hop, música eletrónica e oriental. O i questionou o artista como foi trazer o seu “Novo Fado”, um estilo tão associado a Lisboa, para o norte de Portugal.

“A música que apresento no meu concerto, apesar de ter uma forte base lisboeta, é um conjunto de ritmos, melodias e referências de todo o país, de Norte a Sul”, disse Mafama. “Por isso, faz todo o sentido apresentar o meu disco no Porto, sinto que as minhas músicas são tanto para esta região como para qualquer outra deste país”.

Entre a nostalgia e a vanguarda Uma característica que tem tornado o NOS Primavera Sound um dos festivais mais imperdíveis de Portugal é a presença de bandas de culto e de inúmeros artistas em ascensão.

Quem marcou presença no segundo dia do festival e que tem assistido a um grande crescimento da sua popularidade foi Rina Sawayama, cantautora britânica de origem japonesa, que tem conquistado uma audiência fiel devido à “excêntrica” quantidade de influências que a sua música reúne, desde dance-pop, a nu-metal, a R&B, mas também pela forma como inclui temáticas relacionada com as vivências da comunidade LGBT nas suas canções.

Em entrevista ao i, a cantora afirmou estar “muito entusiasmada” por regressar aos concertos em festivais e poder acompanhar os trabalhos que foram feitos durante a pandemia e que não puderam ser ouvidos ao vivo nestes últimos dois anos.

“Tenho uma visão daquilo que quero na pop, nos meus concertos e na minha música. Pode ser pouco convencional, mas quero injetar um pouco de diversão na vida pessoas”, afirmou a cantora. “Sou muito séria enquanto compositora, mas quando estou a fazer música gosto de mostrar as capacidades da pop. Pode-se dizer que o meu trabalho é uma ode à música pop porque cresci a ouvir este som e é uma grande paixão”.

Sawayama apresentou um dos mais apaixonados concertos da presente edição do NOS Primavera Sound, recebendo uma audiência generosa no palco Cupra, onde, com uma banda composta inteiramente por mulheres, e com duas dançarinas, rasgou linhas de guitarra a roçar o heavy metal, como ‘STFU!’, canções pop magistrais, em ‘Comme Des Garçons (Like The Boys)’ ou músicas de country-pop, nomeadamente, ‘This Hell’, o primeiro single do segundo disco da cantora, Hold the Girl, que vai ser lançado no dia 2 de setembro.

Se as novas tendências, encabeçada também pela loucura do concerto de 100gecs, duo de hyperpop, que abrem caminho para a “música do futuro”, este estilo convive com uma viagem ao passado, culminando com a reunião dos Pavement no palco principal.

Um concerto que já estava anunciado desde 2019, a banda de Stephen Malkmus ofereceu uma autêntica viagem nostálgica revisitando faixas como ‘Gold Soundz’, ‘Cut Your Hair’ ou ‘Harness Your Hopes’, que surgiu como um lado B, mas que devido ao algoritmo do Spotify se tornou a música mais ouvida do grupo nesta plataforma.

Num ambiente familiar e aconchegante, os fãs receberam os Pavement com muito amor, acompanhando as letras das músicas, conseguindo ainda roubar um mais emocional ao vocalista. “Preciso de um momento para me recompor”, disse Malkmus perante um mar de fãs das mais variadas gerações.

A viagem nostálgica continuaria com o rei dos “slackers” e dos “losers”, Beck, que, “despachando” as músicas dos seus últimos dois discos, Colours e Hyperspace, que não foram muito bem recebidos pela crítica, partiu numa viagem pela sua longa discografia, tocando hino atrás de hino, culminando com a icónica ‘Loser’ e ‘Where It’s At’.

Num ambiente mais descontraído que no primeiro dia do festival, uma vez que se encontravam muito menos pessoas no recinto, foi possível desfrutar do belo concerto dos shoegazers Slowdive no Palco NOS a tocar durante o por do sol, o inglês King Krule a encantar uma enchente de fãs no palco Cupra, assistir, no início da tarde, ao fado de Rita Vian no palco Binance, mas a grande “confusão” estava marcada para o concerto das 2h da manhã.

Depois de Pavement, os corajosos que ainda subiram a colina depararam-se com o palco Binance repleto de bandeiras da União Europeia, um pato insuflável e uma bola gigante dentro de palco, enquanto inúmeras pessoas corriam de um lado para o outro em cima de palco. Estamos claro a falar do concerto de Chico da Tina.

Num ambiente em que pouco se distinguia de uma Queima das Fitas ou de uma festa das listas de uma secundária, o rapper de Viana do Castelo tratou de apresentar alguns dos seus maiores êxitos, como ‘Ronaldo’ ou ‘Resort’, do seu último disco, E Agora Como É Que É (2021), com seu o típico humor “nonsense” e uma energia inesgotável, que foi devidamente devolvida pelos seus fãs. Apesar da opinião que se possa ter sobre o rapper, a sua música e os seus concertos, é certo que este é cada vez menos um “fenómeno” e mais um nome de peso e com um grande seguimento. 

O músico despediu-se dos fãs ao som de ‘Portugal Tenho Saudade’ de Alfredo Soares.

O “sick day” da Little Simz Ainda antes de chegar ao recinto já era possível perceber que hoje não ia ser um dia igual aos outros dentro do recinto do Primavera Sound. 

Filas de carros e a dificuldade em encontrar estacionamento denunciava que ia ser um dia complicado para se mover dentro do Parque da Cidade do Porto, onde era possível observar grandes filas nas casas de banho e nos locais onde se vendiam bebidas e comida. Segundo a organização, foi registada a maior edição de sempre, com mais de 100 mil espetadores ao longo dos três dias.

Entre os concertos, um dos mais especiais deste sábado foi a estreia da rapper britânica Little Simz em terras portuguesas, para apresentar o seu mais recente disco, Sometimes I Might Be Introvert.

Com uma presença cativante e uma talentosa banda a acompanhar, a rapper abriu o “livro” sobre a sua vida enquanto uma pessoa introvertida, acompanhada por um instrumental que bebe influências de afrobeat, hip-hop e, inclusive, orquestrações com instrumentos clássicos.

Simz partilhou com os seus fãs que teve um “sick day”, em que tudo pareceu estar a correr às mil maravilhas e, depois da receção e aplausos que recebeu no palco Cupra só pode ter melhorado, mas o seu dia não ficaria por aí. 

Uma das razões que justificam a elevada assistência no último dia do festival foi a presença dos Gorillaz, que ofereceram um icónico concerto que certamente ficará recordado como um dos melhores da história do Primavera Sound. 

Munidos com convidados como a Little Simz, Beck, a cantora da Costa do Marfim Fatoumata Diawara, e Kelvin Mercer dos De La Soul), e com uma espantosa produção visual a acompanhar cada música, com vídeos dos personagens animados de Gorillaz a contarem uma narrativa de rebelia contra a autoridade ao longo do espetáculo, o projeto de Damon Albarn foi um dos mais bem recebidos durante o festival com os fãs a entregarem-se de corpo e alma e a cantar músicas como ‘Feel Good Inc.’ ou ‘Clint Eastwood’, mesmo que o concerto tenha acabado com um problema técnico que retirou o som à banda inglesa, não permitindo sequer que esta se despedisse do público.

Quem sofreu por causa de Gorillaz foi a banda inglesa Squid e o rapper norte americano Earl Sweatshirt, que tocaram, respetivamente, antes e depois dos Gorillaz, uma vez que os concertos se sobrepunham. Contudo, do que foi possível ver de Earl, apesar do formato minimalista do rapper, a sua técnica e a qualidade das canções foram o suficiente para encher o palco e conquistar um público leal, mesmo que muitos tenham chegado só depois do final de Gorillaz.

No palco principal foi ainda possível ver rock dos Interpol, os influentes Dinosaur Jr., banda dos anos 1980 que inspirou projetos como os Nirvana, apesar de pecar a nível sonoro, que pode ser explicado depois destes terem revelado durante o concerto que perderam os seus instrumentos, ofereceram um concerto repleto de “best-ofs” e também o folk de Helado Negro. 

Uma das narrativas mais interessantes do último dia foi a presença no cartaz da drag queen brasileira Pabllo Vitar e a espanhola Bad Gyal, que ofereceram concertos coloridos a uma plateia em êxtase e pronta para a festa.

Neste dia derradeiro do festival, as chaves da ignição foram entregues a David Bruno, músico de Gaia que, tal como os ingleses Dry Cleaning, teve a responsabilidade de abrir as hostilidades do festival. “Não interessa se são 17h, se está pouca gente, se está sol: tens de entrar em palco como se estivesses a atuar no intervalo da superbowl”, disse ao i o músico, que falou sobre o orgulho de ser um músico do Porto a “jogar em casa”.

“Sinto-me muito orgulhoso e com uma grande responsabilidade em cima. Nunca imaginei um cenário destes, mas não é algo que me meta medo: muito pelo contrário, até me motiva (e muito)”, confessou o músico que atuou no palco Super Bock com o seu guitarrista Marco Duarte e o DJ António Bandeiras.

Depois de três intensos dias, os fás de música regressam a casa saciados, dois anos sem festivais, sem poder conviver com os amigos e sem ver os seus artistas favoritos é demasiado tempo. Agora, com o pontapé de saída para a época dos festivais dado, é aproveitar para recuperar e contar os dias até aos próximos concertos e festas.