Donald Fauntleroy. O pato vai cantando alegremente

Há dias para tudo: o 9 de Junho é o Donald Duck Day. A única personagem de Walt Disney a ter direito a apelido (e logo armado ao fino), um palmípede estoira-vergas, que perde a cabeça por tudo e por nada e veste um ligeiramente ridículo fato de marujo antiquado.

Decididamente é um pato completamente esparvoado com muito de tolo, imaturo ou de pateta, se já não houvesse um Pateta (Goofy) na família Disney. Ao contrário do rato Mickey, a personagem que mudou a história da animação universal, apesar de, aqui para nós, ser chato como um bocejo, com a mania que é detective embora as suas histórias nada tenham de verdadeiramente policiais, Donald não deve grandemente à inteligência, preferindo exprimir-se em comportamentos tresloucados e gritos histéricos de sopinha-de-massa (por que diacho são os patos todos sopinhas-de-massa?, veja-se o Daffy Duck). Mas, caramba!, tem nome do meio, ou apelido (atenção às brasileirices, já que os brasileiros foram os maiores consumidores das personagens de Walt, tornando-as praticamente suas), ainda por cima armado ao fino: Fauntleroy. A que propósito? Tranquilos. Já lá iremos. Ainda há por aí páginas à brava a serem escritas.

Donald, curiosamente, nasceu pela voz. Ou seja, Walt decidiu desenhar o pato depois de ter conhecido Clarence Nash, um fulano nascido em Watonga, no Oklahoma, a 7 de Dezembro de 1904, e que gastou a maior parte da sua vida a dobrar vozes no cinema. Nash, antes de ser Donald, e mesmo antes de ter dado a ideia para Donald, foi Tom, o gato que passa a vida a perseguir e a ser apepinado por outro rato um bocado chato e com a mania que é mais esperto dos que os outros: Jerry. O que me leva a fazer mais um parêntesis para perguntar por que é que o diacho dos ratos têm de ser sempre uns vivaços do catano? Ele é o Mickey, ele é o Jerry, ele é até o mexicano do Speedy Gonzalez que deu direito a uma cançoneta bastantante embirrenta de Pat Bone: «Speedy Gonzales, why don’t cha come home?/Speedy Gonzales, how come ya leave me all alone?/’Hey, Rosita, I hafta go shopping downtown for my mother/She needs some tortillas and chili peppers’». Agora que reparo, até parece que sou eu a ser o embirrento quando a minha intenção era escrever sobre outro embirrento do pior, o tal Donald Fauntleroy. 

 

Estávamos portanto no momento em que Walt Disney se encontrou com Clarence Nash e ouviu a sua voz anasalada. Dono de uma imaginação prodigiosa (que lhe valeu uma fortuna colossal, digna de um Tio Patinhas), Walt deixou que a sua mente fosse desenhando um pato à medida da voz antes de se debruçar sobre o estirador e desenhar Donald. Bem, por acaso nem foi bem assim. Nessa altura já Walter Elias Disney, vindo ao mundo em Chicago no dia 5 de Dezembro de 1901, tinha mais do que fazer do que passar os dias a desenhar. Andava pelo mundo a tentar comprar histórias que pudesse transpor para o cinema, fossem elas em desenhos animados ou não, como Pinóquio, Bambi ou 20 Mil Léguas Submarinas. Com o pato encasquinado na cabeça, socorreu-se de três dos seus colaboradores de confiança, deu-lhes umas dicas e o bicho acabou por ser criado, em papel, por Al Taliaferro, Carl Barks e Don Rosa. Nem vale a pena lembrar que a Disney era, de facto, uma indústria e funcionava como tal. Donald foi apresentado ao público em Maio de 1934 numa revista chamada Good Housekeeping, o que acrescenta mais um toque grotesco à sua vida apalermada.
Bom, mas o que interessa nestas coisas de bonecos animados é que os bonecos se animem e ganhem vida, é mesmo por isso que lhes chamamos animados. A Good Housekeeping, pelo meio de muito e úteis conselhos para as donas de casa melhorarem as condições dos seus lares, anunciava a estreia, a 9 de Junho, de um filme chamado The Wise Little Hen (qualquer coisa como A Galinha Esperta). Lá está: Donald no ecrã, a fazer trapalhices, animado como foi feito para ser. 9 de Junho que, nos Estados Unidos, para comemorar os primeiros gestos de mr. Fauntleroy, é o Donald Duck Day, algo que finalmente ainda não importámos e absorvemos como o horripilante Dia das Bruxas que antigamente era simplesmente Dia de Todos os Santos, ou não tão simplesmente assim porque sabemos que os santos são mais do que as mães e juntá-los todos num dia só pode provocar uma baralhação capaz de abalar a mais férreas das fés.

Walt contratou Clarence para dar voz ao pato, claro!, já que, neste caso, foi a voz a dar vida ao palmípede. E Clarence cumpriu a função de 1934 a 1983, e em mais de cem filmes animados, recorrendo também ao português (brasileiro em Você Já Foi à Bahia?) e espanhol (mexicano em Saludos Amigos) para muitas das frases do bicho, até começar a ficar velho para a brincadeira (mesmo que bem remunerada) e resolveu treinar o seu substituto para os anos vindouros, um tipo chamado Tony Anselmo que quase que conseguia imitá-lo, embora com tons um bocado mais agudos. Tony considerava a voz de Donald um assunto complicado: «É muito difícil de se fazer entender. Levei meses e meses a treiná-la». O pato nunca facilitou.

O estoira-vergas
É preciso acrescentar por aqui, e vai ser aqui mesmo, nesta linha, que tanto Clarence como Anselmo recorreram à mecânica para que a voz de Donald fosse absolutamente única e irrepetível, dispondo de um aparelho para o efeito, um microfone especial, The Neumann TLM-170, que permitia obter nuances bastante curiosas.

Walt Disney mandou os assessores desenharem Donald sobre um esboço seu mas não deixou à conta de ninguém a personalidade do animal. Era sua intenção criar uma espécie de anti-Mickey. Se o rato era pacífico, inteligente (bem, há muitas interpretações para a inteligência), socialmente irrepreensível, o pato seria um estoira-vergas do pior, um irritadiço pronto a explodir à mínima provocação, um tipo que reagia antes de pensar, se é que alguma vez pensava. Walt foi, de certa forma, cruel para com Donald. Ou seja, deu-lhe todas as características para que ninguém gostasse dele mas a verdade é que as pessoas gostaram e não tardou a tornar-se tão popular como o próprio Mickey, se não mais, sobretudo junto das crianças mais novas que se riam às gargalhadas com as palhaçadas do excitado pato. Para compensar a sua figura descerebrada, ofereceu-lhe aquilo que se costuma chamar um coração de ouro. Por muito que se abespinhe, Donald arrepende-se sempre das suas atitudes exacerbadas e tenta que tudo volte a ficar bem à sua volta.

A versão americana de Donald divergiu bastante daquela que nos chegava através dos livros aos quadradinhos vindos do Brasil com a chancela da Editora Abril. Em brasileiro, a irmã, Dumbella, desapareceu da sua vida, sem nunca dar cavaco. Nos Estados Unidos viviam par a par, numa cidade chamada Duckburg, em Calisota, transformada na Patópolis da língua portuguesa. Os sobrinhos é que não podiam falhar, nem de um lado nem do outro. Três: gémeos, ainda por cima. Huey, Dewey, and Louie foram Huguinho, Zezinho e Luisinho, uns putos com a mania de serem responsáveis e dedicados ao bem estar alheio, de tal ordem que são escuteiros de mérito. Nada os distingue quando têm os barretes à Daniel Boone na cabeça, com a cauda de castor dependurada na nuca, algo que não deve cair nada bem nos agora tão activos defensores da vida animal, mas se enfiam os bonés ridículos (é curioso, tive um do género pelos meus quatro anos e não, não foi porque quisesse) já podemos diferenciá-los pelas cores, embora isso não contribua em nada para o desenrolar dos acontecimentos já que se apresentam como uma unidade – três em um, vá lá.

A fatiota e o anti-nazi…
Vestir o pato de marinheiro também tem que se lhe diga. A fardinha de marujo fica mais bem assente nos bisnetos de Isabel II debruçados na varanda do Palácio de Buckingham acenando ao povo na festa dos 70 anos de reinado da velha. Ainda por cima nem se pode falar de uma fatiota já que o gajo não usa calças nem sapatos, algo que devia ter ofendido o desgraçado puritanismo norte-americano, mas não ofendeu o que também pode significar que ainda ninguém reparou que Donald Fauntleroy anda simplesmente nu da cintura para baixo. De forma completamente abstracta, o pato surge de calções de banho sempre que resolve ir dar um mergulho. Quem se lembrou de tamanha estupidez é provavelmente um génio incompreendido que merecia um prémio ou um par de chapadas, conforme a visão de cada um que se depara com esta discordância.

Walt imaginou a sua personagem como marinheiro e marinheiro seria, com calças ou sem elas. Depois dedicou-se a pormenorizá-lo como raramente fez com outra malta da sua criação. E o facto é que seis anos após o aparecimento de Donald no anúncio da Good Housekeeping já havia mais filmes com ele como protagonista do que do Mickey, algo que deve ter desgastado um bocado o rato que se sentia rei da criação. Ou pelo menos rei da criação de Disney.

Donald esteve-se bem marimbado para o rato. E foi assumindo cada vez mais o seu papel de herói (participou em sete longas-metragens, algo que nenhuma outra personagem de Walt conseguiu), sobretudo quando, em 1943, protagonizou uma película chamada Der Fueherer’s Face (Donald Duck in Nutziland), um libelo anti-nazi cujo cartaz principal mostrava Donald a atirar um tomate às trombas do próprio Adolf Hitler. A história começa com o pato a ter um terrível pesadelo e a ver-se num sarilho tremendo, na Alemanha nazi, obrigado a trabalhar 48 horas por dia numa fábrica de bombas e ainda a ler o Mein Kampf enquanto toma o pequeno-almoço. Um exagero, naturalmente, até porque os nazis, por muito que tivessem um gosto especial por bombas, não trabalhavam nem 48 horas em dois dias, por mais que Adolf controlasse por completo os sindicalistas. Como seria de esperar, Donald começa a alucinar, uma das suas grandes especialidades, e a ter comportamentos idiotas, outra das suas características mais íntimas. Depois, como sempre (que chatice!) tudo acaba bem com o pato a acordar alegremente na cama de sua casa, em Duckburg, nos Estados-Unidos. Um sucesso! O filme foi candidato a um Óscar para filmes de animação pela Academia e o próprio Donald viria mais tarde, em 1958, a apresentar a cerimónia da entrega dos prémios do cinema, surgindo num ecrã gigante no fundo do palco. Em 2004, para comemorar os seus 70 anos, teve direito a uma estrela no Passeio da Fama de Hollywood. E o Mickey a roer as unhas de inveja, calculo eu. A sorte é que só tem quatro dedos em cada mão. 

Voltemos à vaca fria (com licença de Clarabela): por que raio Walt Disney baptizou Donald com o apelido de Fauntleroy? A primeira menção surge no filme de 1942, Donald Gets Drafted, quando o pato é chamado à tropa pelo nome de família. Muito provavelmente, Walt deixou-se influenciar por um muito velho livro infantil da autoria de Frances Hodgson Burnett, Little Lord Fauntleroy, a história de um rapazinho que se vestia de marujo. Sabe-se que um dos seus roteiristas, Harry Reeves, lhe sugeriu que Donald se chamasse Donald Swansdown, ao que Disney respondeu: «Na. Tem de ser muito mais engraçado do que isso». Fauntleroy??!!! Não terá sido uma das tiradas mais imaginativas de Walt.