A covid-19 deu novas “algemas digitais” ao regime chinês

Códigos QR de manifestantes e descontentes deram vermelho, impedindo-os de viajar, andar de transportes públicos ou ir às compras.

A covid-19 deu novas “algemas digitais” ao regime chinês

Se a China já era conhecida pelo uso de vigilância massiva para controlar e esmagar qualquer oposição, a obrigação do uso de aplicações para monitorizar o alastrar da covid-19 ainda lhe deu mais ferramentas para isso. Como descobriram os cidadãos chineses que queriam protestar na província de Henan, exigindo o descongelamento das suas poupanças. Muitos deles subitamente deram com os seus códigos QR vermelhos, como se tivessem tido contacto com alguém infetado, desmobilizando a manifestação planeada.

Na prática, ficaram com a vida suspensa, dado ser preciso passar o código QR pessoal por um scanner e dar verde antes de viajar, andar de transportes públicos, entrar em supermercados, centros comerciais, bares ou restaurantes. “Estão a pôr-nos algemas digitais”, alertou Chen, que está entre as centenas de depositantes que desde há dois meses têm as suas poupanças congeladas pelas autoridades locais, devido a uma investigação a irregularidades em quatro bancos rurais de Henan, no centro da China. Naturalmente, Chen preferiu não dar o seu nome completo à Reuters, não fosse sofrer outras represálias. 

Na prática, este movimento que tem lançado sucessivos protestos em representação de milhares de vítimas deste escândalo financeiro – uma espécie de ‘Lesados do BES’ – parece ter-se tornado o primeiro alvo conhecido do aumento da vigilância na China devido à covid-19.

A Reuters contabilizou relatos de mais de duzentos códigos vermelhos em grupos de WeChat, uma espécie de WhatsApp chinês, com a diferença que é estritamente monitorizado pelas autoridades de Pequim. O códigos vermelhos não afetaram somente manifestantes, mas também gente que simplesmente tinha as poupanças nestes bancos. Não fosse o desespero levá-los a protestar. 

“Estes são todos os meus bens”, explicou uma vítima ao South China Morning Post. “Trabalhei durante vinte anos para juntar dois milhões de yuan”, o equivalente a mais de 285 mil euros, continuou: “Se eu não conseguir recuperar esse dinheiro, eu não consigo viver”. 

 A imprensa chinesa apressou-se a apontar o dedo aos dirigentes provínciais de Henan, que “podem ter violado a lei criminal ao abusar de um sistema de códigos de saúde”, lia-se na Caixin. Contudo, quer o Governo central tenha tido mão no assunto quer não, os alertas para o risco de abusos por parte de regimes autoritários começaram a mal as aplicações para monitorizar a covid-19 surgiram. 

“Há razões históricas para temer esse tipo de abuso”, lembrou ao i Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do ISCTE-IUL, logo em abril de 2020. “Crises reais ou inventadas – desde o incêndio do Reichstag pelos nazis até à chamada intentona comunista no Brasil de Getúlio Vargas – foram usadas para a declaração de um estado de emergência, restrições das liberdades que nada têm a ver com a crise em questão”, acrescentou Cardoso Reis.