O Jubileu e nós

A República e a Monarquia têm vantagens e inconvenientes. E não deixa de ser curioso que, no país muitas vezes considerado como a democracia mais perfeita do planeta, continue a existir um regime monárquico. 

O Jubileu de Platina da Rainha Isabel II foi um momento grandioso da Monarquia britânica. Que fez inveja a muitas repúblicas – para não dizer, a quase todas.

A monarquia tem um lado arcaico, desatualizado, fora do tempo – a transferência do poder por hereditariedade -, mas tem outro que toca fundo em muita gente: a identificação da nação com uma família. Em vez de o chefe do Estado ser um homem comum, que nasceu como qualquer outro e foi escolhido pelos cidadãos, é um predestinado: alguém que nasceu com uma estrela na testa e foi educado desde o nascimento para uma determinada função.

Alguém que não teve uma educação igual à dos outros meninos: que foi educado para desempenhar um cargo, para representar um povo.

Além disso, ao contrário dos Presidentes, que estão sempre a mudar, os Monarcas são vitalícios, estão no poder até morrerem, ficarem inválidos ou abdicarem. E essa permanência longa na chefia do Estado permite uma identificação maior entre o Monarca e os súbditos. Ele não está ali de passagem, para desemprenhar um papel transitório: está ali para estar. E não depende de nada para isso – nem de combinações, nem de concessões, nem de favores. 

Assim, como há argumentos (fortes) a favor da República, também os há a favor da Monarquia.

Ambos os sistemas têm vantagens e inconvenientes.

E não deixa de ser curioso que, no país muitas vezes considerado como a democracia mais perfeita do planeta, continue a existir uma Monarquia. 

Portugal, apesar de ter com a Inglaterra uma das mais velhas alianças do mundo, esteve sempre mais perto da França ao nível institucional. E por isso o Partido Republicano conheceu um rápido crescimento – para o qual muito contribuiu, note-se, o Reino Unido, com o Ultimatum de 1890 – e Portugal acabaria por ser o segundo país da Europa a ter uma república.

No fim do século XIX e princípios do século XX, o discurso antimonárquico assumiu entre nós uma violência brutal. 

Ao vermos hoje as grandiosas manifestações de apoio a Isabel II, olhamos para o Portugal de então e ficamos abismados ao lermos títulos como: «Portugal governado por assassinos», relativos ao Rei e ao primeiro-ministro.

Ou a discursos onde se dizia: «Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luis XVI».

Ou mesmo a artigos de jornal, ainda sobre D. Carlos, que atingiam cúmulos de brutalidade:

«Mas que espécie de animal é ele que dizem ter a cobardia da hiena e ser traidor como o tigre; que umas vezes arremete de juba alçada como um leão para em seguida virar de costas como um sendeiro; que se perfila de sobrecenho carregado, numa empertigação de tarimba, perante o país e que se roja como uma serpente hipnotizada às patas da Inglaterra?

Ele não pode ser morto. Portugal, o velho herói magnífico, não lhe pode enterrar a espada gloriosa nas profundezas do estômago nem pode descarregar-lhe, no arcado do peito, uma das suas espingardas honestas.

Entendo, pois, que o melhor será, quando os canhões começarem aos urros e quando o sangue principiar a correr, metê-lo numa das gaiolas centrais do Jardim Zoológico, fazer-lhe ali uma cama de palha e deixá-lo ficar muito tranquilo e muito descansado».

Assim escrevia um dos líderes republicanos, António José de Almeida.

Compare-se esta linguagem com o afeto manifestado pelos britânicos à sua Rainha. Imagine-se alguém a dizer que Isabel II devia ser metida numa gaiola e exposta aos enxovalhos da multidão.

E atenção: estamos a falar de um rei culto, como D. Carlos, um rei educado, respeitador dos limites do poder real impostos pelo constitucionalismo.

Dir-se-á que abriu caminho à chamada ‘ditadura de João Franco’. Mas atenção: a palavra ‘ditadura’ nessa época tinha outra conotação. Não significava necessariamente a abolição das liberdades fundamentais. Aliás, basta olhar para os títulos dos jornais, para as caricaturas, para os artigos, para se ver como existia uma ampla liberdade de imprensa. ‘Ditadura’ significava essencialmente governar sem fiscalização do Parlamento – dissolvido pelo monarca após uma situação de bloqueio parlamentar.

Foi isto que conduziu ao morticínio do Terreiro do Paço, onde D. Carlos e o príncipe herdeiro foram abatidos – anunciando o fim da Monarquia em Portugal.

Mas este episódio também mostra a falta de respeito dos portugueses pelas instituições.

Os ataques ao Rei no Parlamento, os insultos nos jornais, não mostravam um país forte, prestes a fundar uma república: revelavam, pelo contrário, um país fraco, desnorteado, que exatamente por não se saber orientar disparava contra o Rei, depunha a Monarquia, punha em seu lugar uma República – pensando que assim resolvia todos os seus problemas.

Mas a monarquia foi-se e os problemas ficaram. Os problemas não estavam nas instituições – estavam em nós próprios.

E assim, mais de um século depois, continuamos às voltas – enquanto a Inglaterra, que mantém as velhas instituições e as saúda fervorosamente, tem uma democracia infinitamente superior à nossa e uma sociedade muitíssimo mais dinâmica. 

Uma democracia que tem no topo do Estado uma rainha que milhões adoram, veneram e respeitam.

P.S. – Em 1957, com nove anos, estive a dez passos de Isabel II (e de Salazar) no Mosteiro dos Jerónimos. Em 1988, na segunda visita da rainha a Portugal, cumprimentei-a (e ao Príncipe Filipe) na receção que deu a bordo do Britannia.