A possibilidade de um novo renascimento europeu pode ter sido a melhor notícia desde 24 de fevereiro
Por Francisco Gonçalves
Antes de 24 de fevereiro, a Rússia dizia que não tinha qualquer intenção de invadir a Ucrânia, estava a realizar exercícios militares conjuntos com a Bielorrússia. De seguida, passou a dizer que não estava em guerra com a Ucrânia, apenas a realizar uma operação militar especial, para proteger a população russófona e «desnazificar» o seu vizinho. Mais recentemente, Vladimir Putin comparou-se a Pedro I, «o Grande», afirmando que, então como agora, a Rússia não conquistava, limitava-se a «recuperar território seu e a desenvolver».
Não querendo acusar a liderança russa de mentir, diz-se que a mesma não lida maravilhosamente bem com a verdade, ou que muda demasiadas vezes de argumento.
Durante anos, muitos intelectuais e políticos ocidentais aceitaram (e aceitam) a ideia da esfera de influência russa que, em grande medida, incluía aquilo que os russos designam de ‘estrangeiro próximo’, referindo-se aos estados resultantes da implosão da URSS.
Ainda recentemente, o Papa Francisco fazia alusão à possibilidade da guerra na Ucrânia ter sido provocada, a NATO estaria a «ladrar à porta da casa dos russos». Agora, percebe-se que não era assim, o «estrangeiro próximo» era um eufemismo para o que verdadeiramente se queria dizer: «império próximo» – território russo, que estamos a recuperar.
Putin parece querer assumir-se enquanto herdeiro do testamento falso de Pedro I, corporizando os receios seculares dos povos vizinhos.
Independentemente da retórica utilizada, apesar de a Rússia estar a conseguir avanços militares (lentos) no terreno, politicamente as dificuldades continuam evidentes. São exatamente estas dificuldades que levam às afirmações contraditórias de Putin ou à retórica exagerada de Medvedev. Na semana na qual Xi Jinping reafirmou o apoio da China à Rússia, a Ucrânia passou a estar próximo de passar a ter o estatuto de candidato à União Europeia, o que significa uma deriva em relação à lógica de esfera de influência russa.
A visita conjunta dos líderes da Alemanha, França e Itália a Kiev, o bloco fundador da CEE/UE, é um importante sinal à Rússia, representando a possibilidade de um renascimento do projeto europeu, com a autonomia estratégica que nunca se teve. Com a recuperação de uma ameaça comum concreta, e com a consciencialização pública da necessidade de termos aparelhos de defesa com capacidade real, talvez haja possibilidade de fazer esse renascimento.
Ainda que, neste processo de adesão, possa dizer-se que ‘a procissão ainda vai no adro’, depois de anos de apaziguamento de uma Rússia que invadia território de países vizinhos (Moldávia, Geórgia e Ucrânia) e de meses de incapacidade de decisão, com visitas a Moscovo que eram um verdadeiro embaraço, a tomada de posição daqueles três Estados pode ser um momento de rara esperança, numa Europa à deriva.
A possibilidade de um novo renascimento europeu pode ter sido a melhor notícia desde 24 de fevereiro. A ideia da Europa voltar a ter beleza e harmonia, como num quadro do renascentista Botticelli, reacende a esperança nos povos europeus. Pasolini escreveu sobre o desaparecimento dos pirilampos, talvez seja hora de os voltarmos a encontrar. Mais Botticelli e menos Putin…
Nota final: o artigo parte da perspetiva que a visita conjunta a Kiev não tenha servido para trocar o membership na UE contra a entrega de parte do território ucraniano à Rússia. Se assim foi, é apenas mais um prego no caixão do projeto europeu.