Qual é a essência da Justiça?

A prevenção e a repressão da criminalidade jamais se podem concretizar a todo e a qualquer custo, sob pena de negarmos a própria essência da justiça.

por Manuel Monteiro Guedes Valente
Doutor em Direito e Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa

 

A prevenção e a repressão da criminalidade jamais se podem concretizar a todo e a qualquer custo, sob pena de negarmos a própria essência da justiça.

Exige-se eficácia na prevenção e na repressão da criminalidade e anseia-se por uma ação do Estado, a quem cedemos parte da nossa liberdade para punir quem comete um crime e lesa os valores em que assentam a nossa vida em sociedade. Valores essenciais à vivência comunitária, que se materializam num território nacional e hoje, mais do que nunca, no espaço global, nos diferentes blocos regionais, culturais e políticos. Os sujeitos dos valores (bens jurídicos) não se esgotam nos limites definidos geograficamente.

A prevenção e a repressão da criminalidade, incluindo a organizada, nacional ou transnacional, não pode ser levada a cabo com a delação dos valores em que assenta a dignidade da pessoa humana.

A história demonstra-nos que se exige um Estado de direito democrático forte, em que a legalidade, a proporcionalidade e a igualdade do poder de punir do Estado sejam a trilogia regente dos atores judiciários. A prevenção e a repressão da criminalidade jamais se podem concretizar a todo e a qualquer custo, sob pena de negarmos a própria essência da justiça, isto é, de afastar a vingança e a violência (Tocqueville e Bobbio), em prol de um Direito fundado na sua função de equilíbrio.

A criminalidade organizada não ocorre num só espaço. Não tem uma só face, nem um só modus operandi, nem uma só manifestação exterior. Essa consciência é real. É tão real que hoje existem estudos que demonstram a sua inserção nas estruturas dos Estados e nas estruturas económico-financeiras. Duas questões se colocam: o quadro legislativo vigente é o adequado para prevenir e reprimir uma criminalidade sofisticada, especializada e plurilocalizada? Os operadores judiciários – juízes, procuradores, advogados e polícias – têm formação científica e técnica adequada a promoverem a devida prevenção e repressão dessa criminalidade?

Para responder a estes dois desafios, professores, investigadores e operadores do Direito – de universidades portuguesas, espanholas, italianas, assinaram a Carta da Rede Internacional de Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional no Seminário Internacional Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional – um espaço científico de investigação e de debate que, por certo, ajudará a que sejam aprovadas e aplicadas políticas criminais que melhorem a prevenção e a repressão da criminalidade organizada transnacional, sem que se coisifique a pessoa humana.

É certo que temos um quadro jurídico equilibrado e, quando bem conhecido e explorado, é adequado a fazer frente a muitos desafios que se colocam no dia-a-dia. Quantas vezes se reclama uma solução jurídica mais sofisticada para colmatar uma fragilidade persecutória quando esta já integra o nosso tecido jurídico, faltando tão-só a sua efetiva aplicação? Demasiadas. Devemos, por isso, exigir melhor legislação, ao invés de mais legislação. Essa melhor legislação implica necessariamente melhor e aprofundada formação técnica e jurídica.