A armadilha da maioria absoluta

O ex-Presidente não podia ser mais claro e só não o entendeu quem não o quis entender. Como quase sempre sucede em cenários de crise moral, alguns não quiseram mesmo entender e refugiam-se, de novo, na criação de um inimigo externo.

Como é evidente, para quem acredita firmemente nos valores da democracia liberal, não há maiorias, mesmo que absolutas, imerecidas.

Mas também é evidente que as vitórias eleitorais, resultam de circunstâncias e opções (ou omissões) que nunca são idênticas em cada caso concreto.

António Costa conseguiu a maioria absoluta em 30 de janeiro sem que, em bom rigor, tenha feito muito para isso.

Os seis anos da chamada geringonça foram um período de navegação à vista, durante o qual não foi resolvido nenhum problema estrutural da sociedade portuguesa. Não foi resolvido e, quase, não foi identificado.

Mas foram também seis anos em que se começou a passar a ideia de que o pior estava ultrapassado e que o futuro passaria a ser muito risonho para os portugueses e, posteriormente, se conviveu com uma pandemia inesperada que atirou os cidadãos para o isolamento e a auto reflexão sem tempo e vontade para analisarem, criticamente, a verdadeira situação do estado da Nação.

A tudo isto se adicionou um enfraquecimento das alternativas democráticas e uma clara canibalização do principal partido da oposição orientado por uma liderança incapaz mas, sobretudo, desinteressada em fazer o adequado e necessário escrutínio das escolhas políticas.

Num cenário destes, a que rapidamente se juntou alguma turbulência na política europeia, o que é sempre demasiado condicionante para países com a dependência de Portugal, como deviam votar os eleitores? Tinham de votar como acabaram por votar, apostando, para já e até ao surgimento de ventos mais favoráveis, numa certa continuidade que permita, a curto prazo, garantir a estabilidade das aparências.

Agora tudo mudou. Embora continue a ser usada (nas suas diversas declinações), a fórmula ‘a culpa é do Passos’ já não tem sentido e, excluindo um número limitado de ‘resistentes gauleses’ doutrinados pelas centrais de contra informação em atividade, esta ‘acusação’ já não mobiliza muita gente.

Neste novo contexto falta saber do que será capaz a oposição democrática e, em especial, o PSD mas, seguramente, menos do que tem feito nos últimos anos não fará agora. Ver-se-á se chega.

É neste contexto de adivinhada mudança que surgem as recentes intervenções públicas da responsabilidade do ex-Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.

Deixando de lado a esotérica opinião de que Cavaco Silva está impedido de opinar quando se sente impelido a fazê-lo – num contraste com o que sempre foi permitido a Ramalho Eanes e Mário Soares – o ex-PR colocou na agenda, num artigo de opinião publicado em abril no jornal Público titulado A coragem política do Governo e o crescimento da economia e, recentemente, em duas outras intervenções, no Observador e na CNN, os verdadeiros problemas estruturais que condicionam e limitam a evolução da sociedade portuguesa.

O Prof. Cavaco Silva começa com a denúncia de uma ausência total de políticas reformistas, aconselhando a respetiva concretização, desafia o Governo para que, num quadro favorável de maioria legislativa, seja ambicioso e escolha, como principal desígnio nacional, a luta contra o empobrecimento e a diminuição da divergência com as economias europeias e estimula os partidos da oposição para que se dinamizem e apresentem uma alternativa democrática ao poder atual.

O ex-Presidente não podia ser mais claro e só não o entendeu quem não o quis entender.

Como quase sempre sucede em cenários de crise moral, alguns não quiseram mesmo entender e refugiam-se, de novo, na criação de um inimigo externo.

Seria correto e justo que, em defesa do verdadeiro interesse nacional, essa estratégia não fosse replicada ou que, sendo-o, não tivesse qualquer aceitação por parte dos cidadãos.

Mas, dito isto, não deixa de ser preocupante ouvir a reação imediata e pavloviana do Governo divulgada através da ministra dos Assuntos Parlamentares.

A ministra Ana Catarina Mendes nada disse sobre a substância das intervenções de Cavaco, mas não resistiu à habitual tentação de «assassinato de caráter do mensageiro» ao declarar que estaríamos perante um simples «sentimento de azedume, ressentimento e despeito». Dificilmente se poderia ser mais direto na opção estratégica ou ser mais negativo e autista perante a situação económica e social do país.

Ora, nem de propósito, nos últimos dias a opinião pública e publicada parece ter compreendido finalmente o verdadeiro estado do Serviço Nacional de Saúde.

Como consequência de uma apropriação ideológica disparatada e de uma política de «contas certas» incapaz de definir prioridades e de aceitar discriminações positivas, o SNS tem vindo a degradar-se progressivamente e a dar lugar ao crescimento do setor privado. A ministra Marta Temido vai ficar na história como a responsável que pior fez ao setor da saúde em Portugal.

Mas infelizmente os constrangimentos e dificuldades não se resumem à saúde.

Estão presentes, com mais ou menos força ou com mais ou menos mediatização, no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, na escassez de professores, na reestruturação da TAP, no desenvolvimento da ferrovia, nas opções sobre o novo Aeroporto, na descentralização de competências, na combate às consequências negativas da inflação (agora que as taxas de juro vão aumentar), na política de rendimentos, no ritmo e natureza de execução do PRR, na definição de apoios para a economia real no programa comunitário 2030, na reforma da Justiça, etc. etc..

Em suma, um caderno de encargos pesado, para o cumprimento do qual não basta ao governo ter uma maioria absoluta. É preciso também diálogo, lealdade e cooperação com todas as forças políticas, culturais, sociais e económicas, que se comprometam com os princípios e valores da democracia liberal.

Em circunstâncias parecidas, mas com equilíbrios mais desfavoráveis, o Partido Socialista, com Soares, Vítor Constâncio e Guterres, foi capaz de estimular e aceitar compromissos, com o único propósito de ajudar Portugal. Cavaco Silva reconhece-o nas suas intervenções recentes. Deve ser ouvido.

Nada justifica que o mesmo não possa ocorrer agora, apesar de uma maioria absoluta, pois o mau uso dessa maioria, rapidamente se transformará numa verdadeira e perigosa armadilha.