O aumento dos salários, a navegação à Bolina e a Lobotomia

Já que se vai aumentar os salários, então que se aumente como deve ser: um aumento de 100%. É altura de acabarmos com os nossos complexos de inferioridade em relação à Europa

por João Cerqueira
Escritor

O primeiro-ministro (PM) António Costa pretende que o salário dos portugueses aumente 20% nos próximos quatro anos. Disse, então, que « temos de fazer um esforço para que o peso dos salários dos portugueses no PIB seja, pelo menos, idêntico ao que existe na média europeia. Esta é a meta que temos de ser capazes de, coletivamente, alcançar».

Pensava que um homem habituado a montar vacas voadoras e a derrubar muros de Berlim fosse mais ambicioso. Não se contentasse com aumentos poucochinhos. Já que se vai aumentar os salários, então que se aumente como deve ser: um aumento de 100%. É altura de acabarmos com os nossos complexos de inferioridade em relação à Europa. Se somos os melhores do mundo em tudo, então também podemos ser no aumento dos salários.

Porém, mesmo com um aumento tão pequeno, houve logo quem estragasse a festa. O presidente da CIP, António Saraiva, respondeu que «é politicamente bonito, capta votos e capta simpatia dizer que temos de aumentar os salários em 20% na legislatura. Mas não [se] diz como é que isso é feito, não se dá o manual de instruções para as empresas e para a economia em geral». O presidente da CIP talvez lide melhor com bolas do que com muros de Berlim; não é homem para montar vacas voadoras e fazer rodeos entre as nuvens. Prefere assuntos terrenos como fazer contas, analisar faturas e garantir a viabilidade das empresas. É um velho do Restelo do século XXI.

Mas se o aumento de 100% dos salários talvez tenha de ser melhor estudado, admito, o aumento de 20% é perfeitamente possível. A História de Portugal fornece-nos dois exemplos que podem ajudar a concretizar esta meta.

Um deles é o aperfeiçoamento da navegação à Bolina devido à invenção das Caravelas na época dos Descobrimentos. Graças às suas velas triangulares – ao contrário das velas quadrangulares das Naus –, as Caravelas conseguiam navegar contra o vento avançando em ziguezague. E assim se dobrou o Cabo das Tormentas e se chegou ao Brasil. Portanto, perante os ventos contrários da guerra da Ucrânia, do aumento do petróleo e da sequente crise mundial, inflação, subida dos juros e outros desastres económico-financeiros que segundo os velhos do Restelo da CIP impossibilitam a tal subida poucochinha de 20% dos salários, o que Portugal tem de fazer é colocar a sua economia a navegar à Bolina, em ziguezague e contramão com o resto do mundo que, tal como no século XV, não dispõe da nossa arte e engenho.

São precisos, pois, novos Bartolomeus Dias, Pedros Alvares Cabrais e Vascos da Gama para comandarem as Caravelas da nossa economia até aos reinos das especiarias e de lá voltarem com os porões cheios das riquezas que permitam aumentar os salários 20% nos próximos quatro anos e, caso se descubra umas novas Molucas, um novo Brasil ou um continente de unicórnios, um aumento de 100% dos salários nos anos seguintes.

Contudo, se o crescimento económico à Bolina não resultar ou se for mesmo considerado um delírio, então recorremos a outra grande descoberta portuguesa: a Lobotomia. Não é possível navegar à Bolina contra a crise mundial, não conseguimos aumentar a produtividade, nem impedir que o PCP sabote o crescimento económico com greves, e não só os salários não irão aumentar como ainda serão minguados pela inflação. Muito bem, tomemos medidas drásticas à la Egas Moniz.

Pega-se em todos os trabalhadores portugueses – homens, mulheres e não-binários – que acreditaram na promessa do PM, junta-se ainda os velhos do Restelo da CIP, os jornalistas do contra e já agora a maioria dos comentadores de futebol e faz-se-lhes uma lobotomia à moda antiga com aqueles utensílios cirúrgicos que também eram usados nos matadouros. Abre-se-lhes aquelas cabecinhas, sonhadoras umas, derrotistas outras, alucinadas outras ainda, e retira-se as partes do cérebro que estão a estragar a festa do aumento de 20% dos salários. Ou seja, os lobos responsáveis pela memória e pela razão.

É provável que estas pessoas fiquem um bocadinho diferentes, uma ou outra poderão até nem acordar após a operação, mas não há problema. Aos que sobreviverem, diz-se-lhes que foram aumentados em 20% – ainda que tenham ficado incapacitados de trabalhar – e eles irão acreditar. Os velhos do Restelo da CIP e os jornalistas do contra admitirão que estavam enganados. Os comentadores de futebol poderão voltar à sua atividade como se nada tivesse acontecido. Toda a gente fica satisfeita.

E quanto ao resto do país que está habituado a celebrar grandes feitos económicos como estarmos na cauda da Europa ou termos perdido competitividade, esses, terão mais um motivo para reforçar a sua fé nas políticas do Governo. Afinal, não há nada que nos garanta que também não sofreram uma lobotomiazinha.

joomcerqueira@gmail.com