Kaliningrado. O “porta-aviões inafundável” dos russos no Báltico

Este enclave russo, que costumava ser o coração da Prússia, tornou-se um dos pontos mais quentes nas tensões entre a Rússia e a UE. A Lituânia garante estar preparada para que lhe cortem a energia.

Dirigentes europeus tentam desesperadamente acalmar as tensões com o Kremlin devido a Kaliningrado, um enclave russo entre a Lituânia e a Polónia. O regime de Vladimir Putin tem ameaçado retaliar pelo bloqueio no envio de mercadorias alvo de sanções europeias através da Lituânia. E a União Europeia tem procurado escudar este seu Estado-membro, defendendo que não se tratam de medidas unilaterais, que Vilnus está simplesmente a seguir indicações de Bruxelas.

Ao mesmo tempo, nos bastidores, dirigentes europeus têm contado ao Político que talvez a Lituânia – uma antiga república soviética, que à semelhança dos restantes países do Báltico tem pedido uma postura mais dura contra a Rússia, estando naturalmente receosa do seu vizinho – esteja a ser mais papista que o papa, como diz o ditado popular. E que “certos países bálticos aproveitaram para aumentar a pressão”, admitiu um alto dirigente de Bruxelas, esta quinta-feira. 

Mas, afinal, porque é que a Rússia tem um pedaço de território tão longe de si, com cerca de um milhão de habitantes, cercado por outros países, nas margens do Báltico? É uma longa história, que vem dos tempos da II Guerra Mundial e da famosa conferência de Potsdam, entre Estaline, Harry Truman e Winston Churchill, em 1945, que seria o pontapé de saída daquilo que se tornaria a Guerra Fria.

A União Soviética, tão desejosa de um porto no Báltico que não ficasse bloqueado por gelo no inverno, agarrou-se a Königsberg, que viria a renomeá-la de Kaliningrado, em honra de Mikhail Kalinin. Tratava-se de um dos poucos dirigentes bolcheviques veteranos da revolução de Outubro que sobreviveu às purgas de Estaline, mantendo-se como chefe de Estado, mas sempre calado e leal ao secretário-geral do Partido Comunista. Ao ponto de permitir que a sua mulher fosse presa e torturada, acusada de trotskismo por se opor a Estaline.

Os soviéticos ficaram com uma antiga cidade alemã na mão, berço de gente da estatura do filósofo Immanuel Kant, onde os reis prussianos tinham sido coroados durante séculos, dado ter sido o quartel-general da Ordem Teutónica, o embrião da Prússia, que por sua vez seria a base da Alemanha imperial. Ainda hoje, da mesma maneira que se chama “luso” a algo português, chama-se “teuto” a algo relativo à Alemanha.

Com Königsberg, agora Kaliningrado, veio uma população maioritariamente alemã, algo que Estaline sabia que poderia dar problemas. Daí ter começado uma agressiva campanha de russificação, enviando para Kaliningrado cidadãos do resto da União Soviética, sobretudo russos, para reconstruir este território. E expulsando quase a totalidade da população alemã, tentando apagar quaisquer traços da sua herança cultural.

O resultado disso foi a criação de uma espécie de “porta-aviões inafundável no mar Báltico” para Putin, escreveu Paul Goble, uma antigo diplomata e agente da CIA, atualmente professor do Institute of World Politics, num artigo publicado na Eurasia Review. Claro que, se os mísseis Iskander – capazes de carregar ogivas nucleares – colocados em Kaliningrado ameaçam a Europa, bem como a frota russa do Báltico, que tem aqui o seu quartel-general, ao mesmo tempo este território está sempre em risco de que a Lituânia e Polónia lhe cortem acesso terrestre ao resto da Rússia. Nesse cenário, a única via que sobraria seria o corredor Suwawki, uma estreita faixa que se estende ao longo de 70km, que leva até à Bielorrússia, um aliado próximo do Kremlin. 

O regime de Putin está bem consciente disso. Como tal, desde 2014, quando anexou a Crimeira e enviou tropas para apoiar os separatistas do Donbass, que tem vido a apostar em autonomizar Kaliningrado da Polónia e da Lituânia, desenvolvendo centrais elétricas e agricultura neste enclave, além de ter reforçado as ligações aéreas e marítimas ao resto da Federação Russa. Claro que muitos bens continuavam a ir por via ferroviária, através da Lituânia. Daí que o bloqueio deste país à passagem de bens russos sancionados pela União Europeia, como carvão, metais, materiais de construção ou tecnologia avançadas, irrite o Kremlin. Que certamente não gostou de ver a população de Kaliningrado a acorrer aos supermercados mal foi anunciado o bloqueio, temendo escassez. 

Já o corredor de Suwawki é uma enorme preocupação para o Ocidente. Havendo um eventual confronto entre a NATO e o Kremlin, este é considerado o mais provável primeiro ponto de contacto, no que toca à guerra convencional. Esta faixa de território ganharia a alcunha de “calcanhar de Aquiles da NATO”, dado que, caso seja tomada pelos russos, tal isolaria os Estados bálticos – Lituânia, Letónia e Estónia – do resto da aliança, permitindo à Rússia tomar estes países mais tranquilamente. 

Entretanto, a Lituânia, perante as ameaças do Kremlin até já se prepara para o risco de que o regime russo a desligue da rede elétrica regional, avançou a Reuters. Dado que, apesar de já se terem passado trinta anos desde o fim da União Soviética, os Estados bálticos ainda dependem muito da rede elétrica russa para providenciar parte da sua energia.

A sorte da Lituânia é ter instalado uma ligação elétrica à Polónia, o ano passado, com garantia caso isso aconteça, de maneira a evitar apagões, pelo menos temporariamente. E já está em curso um projeto europeu para desligar a rede elétrica lituana da Rússia e Bielorrússia, avaliado em 1,6 mil milhões, mas que apenas deverá estar concluído em 2025.