Matraquilhos. Um pequeno campo de batalha

André Mendes e Filipe Parreira vão representar mais uma vez Portugal num Campeonato do Mundo de Futebol de Mesa. Para ambos, a cidade de Nantes significa triunfo, no entanto a caminhada para a glória não é fácil. A modalidade continua sem ser reconhecida como desporto, vive sem financiamento e precisa de jovens para pulsar os…

Matraquilhos, Futbolín, Foosball, Calcio Balilla, Tischfußball ou Baby-Foot. Cada país pode ter a sua designação, mas a paixão que os atletas têm pelo futebol de mesa não muda nos quatro cantos do mundo.

Depois de a covid-19 interromper as competições desportivas durante dois anos, o Campeonato do Mundo de Futebol de Mesa está de regresso e acontece numa cidade onde Filipe Parreira e André Mendes já foram muitas vezes felizes.

Foi em Nantes, França, que André, com mais de 20 anos de carreira, ficou em nono lugar na primeira experiência internacional, em 2010, na tabela classificativa do Open Individual Masculino no escalão de seniores, onde participaram mais de 50 atletas. Dois anos depois igualou a sua melhor posição, na mesma cidade francesa.

Para Filipe, que em criança implorava ao pai para o levar aos convívios de café onde os amigos – incluindo André – só jogavam matraquilhos, Nantes tem um significado igualmente especial: na estreia da sua caminhada internacional, conquistou dois campeonatos do mundo seguidos, em 2012 e 2013, no escalão de juniores.

Basta o Mundial ser em Nantes para a expectativa ficar alta, mas esta é alimentada também pela grande classificação do carpinteiro de 24 anos no Open Bonzini – competição jogada exclusivamente na mesa oficial francesa: no mês passado, Filipe terminou na nona posição da prova, que contava com mais de 300 atletas.

Ambos dizem que querem melhorar o lugar e subir no top 10. André assume que este ano treinou “como nunca”, porém admite que pode acontecer chegar à competição e não passar da fase de grupos. “Tenho de ter sorte no grupo, que não apareçam aqueles tubarões”, aponta o técnico de tráfego aéreo de 38 anos, referindo-se aos melhores jogadores, alguns com costela portuguesa como os luso-franceses.

“Aquilo é como se tu entrasses num palácio. Cada escalão joga num determinado sítio, no entanto há uma ligação entre nós e aqueles que dizemos que são ‘estrelas’. Então nós andamos ali como se estivéssemos a viver as nossas fantasias. Jogadores que vês na internet estão ali ao pé de ti, falam contigo, somos todos iguais, mas quando chegam à mesa [de matraquilhos] não te conhecem”, explica Filipe, sentado na garagem de André, devidamente equipada com três mesas de matraquilhos diferentes; frigoríficos, para ter sempre à mão uma cerveja fresquinha; e uma máquina de café para um boost de energia nos momentos em que o sono compromete a concentração nos manípulos.

Juntamente com os amigos da margem sul do rio Tejo, viajam para Nantes mais 27 atletas – entre os quais seis mulheres – que formam a comitiva portuguesa no Mundial de 2022, que começou ontem e será disputado até 3 de julho.

Acompanhados pelo selecionador nacional e quatro dirigentes da Federação Portuguesa de Matraquilhos e Futebol de Mesa (FPMFM), os 29 portugueses vão jogar em todas as categorias de seniores, veteranos e femininos, começando pela fase de qualificação, com cinco mesas ao seu dispor: Bonzini (originada em França), Tornado (Estados Unidos), Leonhart (Alemanha), Roberto e Garlando (ambas em Itália).

Ricardo Vieira vai deixar os seus negócios no turismo em stand-by para rumar a Nantes como elemento da comitiva técnica. O vice-presidente da FPMFM, sediada em Valongo, deposita também muita esperança no bom desempenho dos federados, que permitirá impulsionar a modalidade, que perdeu atletas com a chegada do vírus, sobretudo veteranos – um abandono também sentido por Filipe Parreira.

Segundo o vice-presidente, a Federação tem “cerca de 250 atletas federados” com apenas “cinco associações distritais no ativo”: Porto, Braga, Castelo Branco, Madeira e Lisboa, sendo que esta ainda “não confirmou a sua filiação para a presente época”.

Se não fosse a pandemia, o número de atletas “tinha a tendência a crescer”, diz o jovem Parreira, ao recordar o último campeonato nacional em 2019.

Na visão do carpinteiro, entre 2007 (ano de fundação da FPMFM) e 2017 havia mais jogadores a participar. “Chegámos a ter campeonatos nacionais com mais de 100 equipas, ou seja, perto de 300 jogadores”, numa altura em que era necessário ser apurado para estar nas melhores provas do país. A adesão “caiu de repente”, sublinha Filipe.

Para André Mendes, a criação de divisões, como acontece no snooker ou ténis de mesa, podia resolver a ausência de jogadores. Nos matraquilhos, “é tudo ao molho”, atira.

“Aparece o João, um excelente jogador na escola dele, vai ao campeonato nacional pela primeira vez. Se tem o azar de calhar no grupo de jogadores, como eu e o Filipe que já jogamos há mais de 10 anos, ele nunca mais vai. Pode até ter o efeito oposto, sentir que tem muito a crescer, mas daquilo que eu tenho visto, a maioria tende a desaparecer. Em dez miúdos apenas um é um caso desses”, considera André, acrescentando que a falta de apoios na modalidade também é uma barreira para atingir maiores feitos em todos os níveis.

Sem apoios, é mais difícil fazer roletas As competições nacionais realizam-se com maior frequência no Norte do país, uma vez que existem condições mais favoráveis à organização das provas. Isto também se deve à envolvência que está por detrás da modalidade na região, comparando com Lisboa.

André Mendes, apesar de contar com o estatuto de atleta com mais títulos individuais no país este ano, é o único representante nacional que vai ao Mundial sem ter recebido qualquer apoio da sua autarquia. A Câmara do Seixal justificou a falha com o facto de o atleta não estar associado a uma coletividade. “Nenhum dos meus colegas está”, afirma André, sublinhando que fica “desmotivado” com a falta de ajuda.

No entanto, o técnico de tráfego aéreo conseguiu encontrar outra forma de subsidiar a sua ida a Nantes. A pista está nos acessórios que tem vestido: um boné e uma t-shirt com um logótipo estampado. O atleta conta que, através de “um amigo de um amigo”, conseguiu uma ajuda monetária de um casal, proprietário do restaurante Central Mar e Sol, na Charneca da Caparica, que se rendeu à iniciativa e não hesitou em ajudá-lo para representar mais uma vez Portugal.

Ainda assim, estes obstáculos impedem a modalidade de avançar. Tanto em Portugal como em países com maior número de atletas, o futebol de mesa não é considerado de utilidade pública, o que significa que não merece o reconhecimento do Estado como um desporto.

André explica que esta é uma luta que existe desde o início da Federação. Nem mesmo o maior feito já alcançado por Filipe serviu como alavanca para mudar o estatuto. “Já tivemos os juniores que foram campeões do mundo e ainda andam à espera de tornar esta modalidade num desporto”, frisa o parceiro Mendes, que levou o jovem Parreira a lembrar que Itália, onde os matraquilhos também são muito populares, só este ano conseguiu alterar o reconhecimento da modalidade.

O vice-presidente Ricardo Vieira também observa as dificuldades que a modalidade sente por não ser encarada como um desporto. Admite que é um “processo longo”, mas que, com o apoio da International Table Soccer Federation (ITSF), estão a ser criadas estruturas para num prazo estimado “entre três e cinco anos” ser considerada um desporto.

“Os primeiros contactos com as entidades governativas deram boas perspetivas”, garante o responsável, referindo que este ano serão formados os novos órgãos sociais da FPMFM, os quais darão continuidade “ao processo de candidatura à utilidade pública”.

Mesas nas escolas para melhorar a vida da modalidade e dos jovens A curto prazo, o objetivo da FPMFM prende-se com atrair mais jogadores dos dois sexos. “Vamos arrancar este ano com o projeto de escolas homologado internacionalmente – ‘100 mesas para as escolas’”, adianta o número dois da Federação, explicando que irão “trabalhar mais com os municípios e patrocinadores para que as mesas sejam colocadas nas escolas sem custos para os alunos e estabelecimentos de ensino”. As negociações com o Ministério da Educação seguem um bom rumo.

Na óptica de André, este é um projeto “importantíssimo” para ajudar no combate ao isolamento social das crianças, provocado pelo uso excessivo de telemóveis. “Os matraquilhos promovem a união, o convívio”, mas também “a atenção e o foco”, enfatiza, considerando que a medida pode ser um sucesso “se tiver uma boa estrutura e pessoas apenas dedicadas a isso”.

“E é futuro”, diz de seguida Filipe. “A seguir a nós, há poucos miúdos em Portugal a jogar. Portanto, ou apostamos nas escolas” ou a modalidade vai acabar por decair, vinca o carpinteiro, que pertence à última geração de atletas que ganharam a paixão pelos ‘matrecos’ nos cafés.

Não é só o contexto social que influencia negativamente. O barulho dos matraquilhos também é uma grande causa para que haja menos estabelecimentos com mesas para jogar, o que compromete com o treino dos jogadores.

Para contornar a perturbação sonora inerente ao jogo, a Federação decidiu criar uma nova mesa, que vai manter o estilo tradicional português, mas conjugado com características mais modernas, como a jogabilidade, das cinco mesas oficiais.

Ricardo Vieira afirma que a nova mesa “será apresentada nas próximas semanas”, no entanto o eclodir da guerra na Ucrânia prejudicou a circulação das matérias-primas, dilatando o tempo de produção.

Neste momento, há várias medidas que vão avançar e que podem transformar a modalidade. A primeira geração de federados, onde estão Filipe e André, não tem condições para viver apenas dos golos que marca com os bonecos erguidos em manípulos. Os dois parceiros dizem que a realidade lá fora é diferente, mas nada de estratosférico.

O jovem Parreira acredita que, com o seu esforço, vai abrir portas para a seguinte geração ter a possibilidade de profissionalizar a vida do atleta na modalidade. O vice-presidente Ricardo vê um futuro “complicado”, e aponta que “dependerá da estrutura dos torneios, da cobertura televisiva e de patrocinadores”. Porém, acredita que a “entrada no comité olímpico internacional da modalidade” facilitará essa ascensão.

Os matraquilhos são um “lifestyle”, diz André, sorridente. Mesmo com uma pausa na carreira, não perdeu o gosto que tem pelos matrecos. Filipe passou por esta fase, mas admite, com um brilho nos olhos, que “quem tem o bichinho” não descansa enquanto não estiver a pulsar os jogadores de chumbo. Em Nantes vão medir-se com os melhores do mundo e, com ou sem apoios, mostrarem o que valem.