MP quer as duas crianças de Famalicão à guarda da escola

O caso Mesquita Guimarães continua a arrastar-se e, desta vez, o MP quer que a escola fique com a guarda dos dois alunos durante o período escolar. Será o mais acertado?

O Ministério Público (MP) quer que Tiago e Rafael Mesquita Guimarães, os dois alunos de Vila Nova de Famalicão que não frequentam a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, sejam colocados à guarda da escola “durante o período escolar”. Para o MP, esta é a única medida “que se apresenta como do superior interesse dos jovens e com potencial a, definitivamente, afastar situação de perigo existencial dos mesmos”, lê-se nas alegações do processo de promoção e proteção dos adolescentes.

À agência Lusa, o pai dos estudantes, Artur Mesquita Guimarães, explicou que está marcada para hoje uma audiência de julgamento no Tribunal de Família e Menores de Famalicão. “Naturalmente que não concordamos com estas alegações e terça-feira [hoje] diremos de nossa justiça”, disse, tendo sido apoiado pelo ex-líder do CDS, José Ribeiro e Castro, que faz parte de um grupo de mais de 100 personalidades que assinaram um manifesto contra a obrigatoriedade da disciplina. “A promoção da retirada dos pais, ainda que parcial, é uma violência tão inominável que, de facto, é um crime de abuso contra o Estado de Direito e que merecia ser perseguido por isso”, criticou o antigo dirigente, acrescentando que “é inaceitável que o Estado use a coação e a violência do Estado contra famílias e seus filhos”.

Mas que consequências tiveram, têm e terão as tomadas de decisão destes encarregados de educação? “São crianças que podem estar em risco no que toca à sua vivência escolar porque, independentemente das nossas crenças, ao inscrevermos os nossos filhos na escola pública, num país democrático, eles são autónomos”, começa por apontar a psicóloga Ana Carina Valente, em declarações ao i, referindo-se ao facto de o MP considerar que os pais “põem em perigo” a formação, educação e desenvolvimento dos filhos.

Para o MP, existe mesmo o perigo de os jovens sofrerem “maus-tratos psíquicos”, “não receberem os cuidados ou a afeição adequados às suas idades” e “estarem sujeitos a comportamentos dos pais que afetam gravemente o seu equilíbrio emocional”. “A liberdade das crianças pode estar em risco. Aquilo que me preocupa mais, desde o primeiro minuto, é que isto se arrasta e estes jovens estão a vivenciar a adolescência desta maneira”, diz a líder do grupo “Capacetes Laranjas”, que acompanha, via chamada telefónica e videochamada, de forma totalmente gratuita, a comunidade ucraniana em Portugal e pretende fazer o mesmo com os refugiados que continuarão a chegar.

“Quer se queira quer não, eles estão estigmatizados. São x miúdos de y família. Há aqui uma série de consequências que recaem sobre estes jovens e isto tem de ser ponderado e pensado. Toda a gente sabe quem são, já foram à Segurança Social, o processo já esteve num tribunal, foi para outro, estão referenciados pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)… Terão necessidade de passar por isto?”, questiona a profissional de saúde, asseverando que “a adolescência é fundamental para os adultos que vão ser”.

“Os pais têm o direito de ter a sua opinião, mas as crianças não nos pertencem: estão inseridas num contexto escolar e têm de frequentar as aulas. Parece-me que não estão salvaguardadas. Quando esta decisão foi tomada, eram ainda mais jovens. Nem sequer sabemos aquilo que pensam”, continua a doutoranda em Psicologia da Saúde que exerce funções enquanto professora assistente do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA).

“O direito à diferença” “Que mensagem estou a passar ao incentivá-los a não cumprir as leis? A minha crença pode ser que andar a velocidades elevadas é que é correto, mas não posso levar os meus filhos a fazer o mesmo. Temos de proteger os nossos filhos no seu percurso e não colocá-los em risco: é esse o real interesse da criança”, sublinha, ao i, tendo uma perspetiva distinta da de João Lutas Craveiro, doutorado em Sociologia do Desenvolvimento e da Mudança Social, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) e Professor Assistente Convidado na mesma instituição.

“Inclui-se nas linhas orientadores para a educação para a cidadania ‘a educação intercultural, que pretende promover o reconhecimento e a valorização da diversidade como uma oportunidade e fonte de aprendizagem para todos, no respeito pela multiculturalidade das sociedades atuais’. Ora, é em nome desta multiculturalidade que é preciso respeitar a liberdade dos encarregados de educação”, afirma o docente, que tem áreas de investigação e interesse como as vulnerabilidades sociais e territórios expostos a riscos diversos ou os cenários socioeconómicos e mudança social estimulada por inovações tecnológicas.

“Os temas da disciplina estão eivados de interrelações entre campos do exercício da cidadania e da ciência. Em que medida, então, estão praticamente excluídas as questões da interreligiosidade e do diálogo ecuménico? As religiões e o ateísmo não são temas pertinentes? Como as religiões e o ateísmo abordam a questão da responsabilidade humana? Não é pertinente?”, pergunta. “Pode acontecer, até, que adolescentes levem questões críticas para colocar aos seus papás e mamãs: ‘Pai, tu acreditas em Deus? Mãe, tu acreditas em Deus?’. Questões tão incómodas como ‘a partir de quando decidiste ser ‘normal’ e te começaste a identificar como heterossexual?’; ‘achas que é isso a normalidade?’. Enfim, papá, mamã: ‘tu és normal, e anormalmente chato?’. Acreditas que somos responsáveis pelos nossos atos?”.

“E a interdisciplinaridade? Numa sociedade cada vez mais marcada pela emergência dos problemas complexos (wicked problems), é mais um ‘inter’ marginalizado? Só é pertinente a interssexualidade? A trans qualquer coisa a ver com o sexo? A identidade de uma pessoa esgota-se ao que faz com o sexo?”, interroga. “Creio ainda que se assiste aqui a uma dicotomia entre família e Estado, embora não se possa defender – ao contrário de Max Weber para as questões do exercício legítimo da violência – que o Estado tem o monopólio da formação das consciências humanas”. 
“Esta dicotomia, família ou Estado, é equivalente a outra clivagem ideológica entre Estado e mercado. Ora, educamos para o dogmatismo e para uma realidade que não existe?”, questiona o sociólogo que exerceu o cargo de formador do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) e do 1.º curso de Formação Teórico-Prática de Magistrados de Tribunais Judiciais (2009-2010).

“A realidade é multitudínea, multidimensional, e não se pode dogmatizar numa posição oficial. É certo que a inculcação dogmática de valores é própria de uma sociedade totalitária, mas é também certo que essa inculcação produz resultados variáveis, e que a inculcação de valores é sempre reversível”, declara, notando que “J. Habermas abarca a mesma flexibilidade, quanto aos valores educacionais, quando fala de intervenções do Estado muito mais intrusivas, como as políticas antigas de eugenia”.

“O que está em causa é a liberdade de consciência. Em que medida uma imposição legal pode determinar o que são valores ‘cívicos’ e o que as famílias ou encarregados de educação devem ensinar em casa, não contrariando (sob sanção jurídica e sufrágio social no que o Estado entende ser a boa opinião)? John Rawls, a propósito de questões equivalentes, coloca exatamente a questão da universalidade das Leis no contexto de uma sociedade pluralista”, salienta, lembrando aquele que foi professor de filosofia política na Universidade de Harvard, nos EUA, e autor de obras como ‘Uma Teoria da Justiça (1971)’ ou ‘O Direito dos Povos (1999)’.

“Pode até acontecer, que diante deste caso particular, se inscreva a flexibilidade legal que Rawls antecipava: o direito à diferença deve permitir, em casos excecionais, a diferença do Direito! É o que está em causa, sem agora atender a outras variáveis que se desconhecem: qual a opinião não do encarregado-pai de educação, mas da mulher do casal, encarregada-mãe? E por que os filhos nunca falam? Qual a opinião que, de facto, têm? E que soluções jurídicas podem haver, atendendo a que estamos perante alunos excecionais – ouvidas todas as partes, em resumo”, finaliza, alinhando-se agora com Ana Carina Valente.

“O direito à diferença deve permitir, em casos especiais, a diferença do Direito!”, sintetiza.