É verdade: o livro que acabo de lançar – Salazar e a Sua Época – começou a ser escrito há… quarenta anos. Parece impossível, mas é mesmo assim. Eu explico:
Quando o original estava quase pronto, e me preparava para a revisão final, a minha mulher descobriu numa arrecadação da nossa casa (que funciona como armazém de livros) um monte de folhas escritas, umas à máquina e outras à mão, que percebeu logo dizerem respeito à matéria do livro que eu estava a escrever naquele momento.
– Mas isto é exatamente o mesmo livro que estás a fazer! – exclamou, estupefacta, enquanto folheava os papéis amarelecidos pelo tempo.
E era. A minha surpresa foi quase igual à sua quando comecei a ler aquelas páginas. As datilografadas continham um texto na sua forma final, já corrigido e pronto a seguir para a tipografia; as manuscritas eram notas soltas ou textos inacabados. Mas estava ali um trabalho formidável!
Perguntará o leitor, igualmente surpreso: mas eu não me lembrava de ter feito aquele trabalho? Apesar do tempo transcorrido, não tinha ideia daquela investigação e de ter escrito aquelas folhas? É claro que me lembrava. Não estou tontinho nem tive uma amnésia. Mas não tinha memória de que a investigação tivesse sido tão profunda e não pensava que parte do texto estivesse tão adiantada do ponto de vista formal.
Insistirá o leitor: mas, sendo assim, como se explica que, quando voltei a escrever sobre aquela época, não tenha tentado recuperar o trabalho feito? E, já agora, por que o interrompi?
Interrompi-o quando me convidaram para a direção do semanário Expresso e a minha vida mudou.
Nessa nova função, os primeiros tempos foram extenuantes, física e mentalmente. Depois, durante anos, não consegui escrever nada além das crónicas e dos editoriais do jornal. E quando regressei aos livros fi-lo com outro espírito. Pus de parte os estudos históricos e optei por uma escrita memorialista e pela ficção, menos exigentes no plano da investigação.
Mas como o bom filho à casa torna, ao deixar o jornalismo – trinta e três anos depois de o ter abraçado profissionalmente (sendo os últimos dez neste jornal, que fundei com um grupo de jornalistas amigos) – regressei à História. E ao período do Estado Novo. Daqui nasceu uma trilogia a que dei o título de Estado Novo: a História Como Nunca Foi Contada.
Publicado este livro em três volumes, que conheceu um razoável êxito, percebi logo que o seguinte seria sobre o período imediatamente anterior: a época em que nasceu e cresceu Salazar, e os seus primeiros passos na política. Ora, era precisamente essa época que eu estava a investigar quatro décadas antes.
Mas por que não tentei, então, recuperar o trabalho feito quando me lancei numa nova pesquisa, em vez de começar tudo de novo? Não seria essa a decisão natural e lógica? A resposta é simples: porque receei que isso me limitasse. Se retomasse o trabalho anterior, a minha visão dos acontecimentos ficaria à partida condicionada, comprometendo um olhar diferente sobre o tema. A frescura, a criatividade, o aparecimento de uma perspetiva nova só seriam possíveis fazendo tudo desde o princípio. Tomei assim a decisão de só voltar a pegar naquelas folhas no fim, quando o livro estivesse praticamente concluído.
E foi quase o que aconteceu.
Ao reler o que tinha escrito antes, e comparando-o com o novo texto, verifiquei duas coisas: a perspetiva sobre o período era idêntica e o grosso dos factos apurados também, o que me transmitiu segurança. Até encontrei nos dois textos frases quase iguais, o que não deixa de ser impressionante dada a quantidade de anos que os separa. Mas tive igualmente surpresas. Descobri na investigação anterior factos e ângulos de visão que desta vez me tinham escapado. E foi isso que me levou a tomar uma decisão com que de todo não contava: cotejar linha a linha a nova versão com a antiga, aproveitando o que nesta havia de novo ou original.
Pode assim dizer-se que este livro resulta da fusão de dois livros inacabados, escritos com uma diferença de quatro décadas. Mas tratou-se de uma fusão criativa. Em vez de condicionar o texto final – como poderia ter acontecido se tivesse retomado a investigação anterior -, potenciou-o. Sinto que esta versão é mais rica, rigorosa e próxima da realidade do que qualquer das outras duas.
Mas afinal do que trata concretamente este livro? Qual é sua originalidade?
Para lá de uma visão própria sobre o período em questão, e da revelação de factos muito pouco conhecidos, encaixam-se duas histórias que normalmente surgem separadas: a de Salazar e a do país.
No início, as duas histórias situavam-se naturalmente em pontos muito distantes: a de Salazar numa pequena aldeia da Beira Alta, a do país decidindo-se sobretudo em Lisboa.
Mas à medida que o tempo avança, as duas histórias aproximam-se. Salazar torna-se uma figura importante nos meios conservadores, e o país, com o golpe de 28 de Maio, vira à direita. Até que ambos os destinos se tocam – quando Salazar assume o Ministério das Finanças, em 1928 – e finalmente se confundem – no momento em que Salazar sobe a chefe do Governo e começa a controlar o Estado, em 1932.
A partir daqui, as histórias de Salazar e do país passam a ser uma só.
A reconstituição do percurso do jovem António d’Oliveira Salazar desde a pequena aldeia do Vimieiro até ao Palácio de S. Bento, num país sacudido por violentos e trágicos acontecimentos (que se vão descrevendo com algum pormenor), é o tema deste livro.