Álvaro Covões. ‘Temos tudo para ser o melhor país, mas pensamos pequenino’

O NOS Alive regressa ao Passeio Marítimo de Algés a partir da próxima quarta-feira, dia 6 de julho. Com escritório montado no recinto que voltará a ganhar vida 900 dias, Álvaro Covões, diretor da Everything is New e dirigente da Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos, fala-nos do seu percurso neste meio, dos…

Nos tempos de adolescente já era visto na escola como o ‘RP’? Ou longe disso? Por acaso fui muitas vezes delegado de turma. Mas era porque era contestatário.

Então tinha popularidade junto dos seus colegas… Acho que, acima de tudo, tinha interesse em mudar as coisas. Não tanto no sentido da popularidade, isso não é nada. Tinha interesse em mudar as coisas. Aliás, já na tropa me chamavam contestatário.

E fala muitas vezes nisso mesmo, de procurar fazer por um mundo melhor… [risos] A expressão Por Um Mundo Melhor pertence a outro festival. O cidadão comum comete um grande erro estratégico quando acha que o Governo é que vai mudar as coisas e vai tornar a vida melhor para todos. A vida só se vai tornar melhor para todos se todos contribuirmos, mas para isso é preciso abanar, chamar a atenção… E, portanto, a sociedade civil tem um papel importantíssimo. E é algo que tem falhado nestes 48 anos, desde o 25 de Abril. Abrimos a televisão e só vemos partidos políticos e comentadores que são genericamente pessoas dos partidos. Está errado. Eles têm o seu papel, são fundamentais para a democracia, mas partidos sem sociedade civil não existe. E eu acredito muito na sociedade civil, por isso é que estou no associativismo. Já em miúdo era assim, contestatário, queria discutir com o Conselho Diretivo da escola; na universidade era o representante dos alunos no Conselho Pedagógico… O Estado não consegue mudar sem a nossa participação, agora se tivermos uma postura laissez faire, laissez passer… Evidentemente que melhorou muita coisa, mas se compararmos com outros nós estamos sempre a descer degraus, é preocupante e temos que reverter a situação. 

É urgente essa mudança? É fundamental e parece-me que o grande desafio para Portugal dos próximos 10 anos devia ser aumentar os hábitos culturais dos portugueses. Não é só o estudo que a Gulbenkian encomendou – e que foi publicado há dois meses – que demonstra que os portugueses têm os hábitos culturais mais baixos da Europa; já a Comissão Europeia fazia esses estudos e nós, no caso através da Associação de Promotores [de Espetáculos, Festivais e Eventos], da qual agora sou presidente, já vínhamos alertando que os hábitos culturais dos portugueses eram extremamente preocupantes. Somos os últimos na leitura de livros, somos os últimos a ir ao teatro, somos quase os últimos a ir a concertos e festivais… 

Há vários anos que vem tocando nesse assunto… E, finalmente, veio um estudo que deu mais credibilidade porque foi encomendado pela Gulbenkian [risos]. Mas, para minha tristeza, está tudo calado. Desde o Governo à oposição, está tudo calado, até o Presidente da República. E lá estou eu – eu e outros – a relembrar-lhes… Quanto mais acesso uma pessoa tem à Cultura, mais rica interiormente se torna. É a única forma de aumentarmos a riqueza nacional. Os números também mostram que temos das taxas de produtividade mais baixas de Europa. É tudo menos, menos, menos… mas, pronto, depois somos dos países mais seguros, mais simpáticos, mais baratos… Só que o país mais barato significa pobreza. Está errado. Temos que ter um país equilibrado, mas as pessoas têm que ter um nível de vida melhor.

Ainda tem esperança na alteração dos vários indicadores? Preocupa-me muito o adormecimento dos partidos do arco da governação. Mas isto um dia vai ter que mudar, nós acreditamos sempre que o D. Sebastião há de regressar. Há um velho ditado que diz que Portugal dá sempre a volta. Tem que bater no fundo para dar a volta, mas já chega. De facto as políticas culturais falharam e há que haver coragem para assumir que falharam, e isto não tem a ver com partidos ou com um Governo, tem a ver com o regime. Lisboa hoje tem menos teatros do que tinha há 50 anos. E ninguém fala nisso. 

O teatro é outra arte com a qual tem uma relação especial e familiar uma vez que o seu bisavô dirigiu o Teatro São Carlos… Quando começamos a ver os equipamentos culturais a transformarem-se em empreendimentos de luxo, restaurantes ou hotéis… é assustador. Mas também é uma questão de moda. Se for fixe ler um livro, as pessoas começam a ler. Vão ao teatro, leiam livros, comprem livros, se não tiverem dinheiro para comprar vão às bibliotecas, há tanta forma de ter acesso a livros… Isto da Wikipédia, do Google, da PlayStation, é tudo muito giro, mas não podemos viver só disso. Os jovens e os adolescentes deviam entender que a boa vida transitória que muitos estão a ter pelo sacrifício que os pais fazem para lhes dar uma vida melhor do que a que eles tiveram, se não se enriquecerem pessoalmente, vão ter uma vida pior do que os pais, é preciso terem consciência disso. Mas para terem uma vida melhor é preciso trabalhar, ter valores e a Cultura também dá. Quando compramos bilhetes para um espetáculo saímos de lá felizes. Saiam, conheçam pessoas, convivam, troquem experiências… Nós temos uma profissão, todos nós que trabalhamos no setor da Cultura, em que somos um bocadinho Deus, porque o resultado do nosso trabalho dá um momento de felicidade a toda a gente. Isto é uma coisa absolutamente extraordinária! A Cultura paga-se, é um bem essencial. Nós temos é que compensar as pessoas que não têm capacidade de comprar, aí tem que se dar dinheiro às pessoas para gastar na Cultura, é a única forma. O mesmo se passa com a imprensa, no mundo inteiro. Estamos a viver no capítulo da desinformação ou informação defeituosa, que é muito perigoso. No fundo, o papel da imprensa é ser o quarto poder, ser a voz da sociedade civil, por isso devíamos procurar soluções para manter as empresas do setor robustas. E não estamos a fazer isso. E não se trata de dar subsídios, tem que se pôr as pessoas a consumirem: revistas, jornais, livros, tudo.

Também foi isso que aconteceu com o próprio Alive, até ‘ficar na moda’ e tornar-se entretanto um dos principais festivais portugueses e com cada vez mais reconhecimento internacional? Acontece com todos os projetos, até consolidarem demoram o seu tempo, porque à primeira as pessoas não acreditam na publicidade e, por isso, é através do passa-palavra. Mas este também é um país pequeno, com 10 milhões de habitantes, até é uma maluquice a quantidade de eventos que nós temos. E além de não terem hábitos culturais, as pessoas também não têm poder de compra. 

É o caso dos jovens, que acabam por ser um grande público dos festivais… Os festivais nunca esgotavam em Portugal, fomos o primeiro festival dos grandes a começar a esgotar e, de facto, a única forma de conseguirmos isso foi complementar o público português com o público estrangeiro. Nós vivemos num mundo global, não é por mero acaso que só o aeroporto de Lisboa recebe 17 milhões de passageiros por ano…

Mas, ainda assim, surpreende-o que haja tantos jovens que, apesar dos salários mais baixos, façam questão de por sempre um dinheiro de lado para comprar bilhete para um dia do festival? Estamos mais festivaleiros? Há aqui um indicativo relacionado com o pós pandemia. Todos os festivais estavam à venda em 2019 e estão a acontecer em 2022, são praticamente quatro anos de venda. Só em 2023 é que vamos ver a realidade, porque volta a ser um ano normal. Tenho visto na imprensa que as pessoas estão com vontade de ir e estão a aderir em massa, certo, mas também é preciso ter capacidade económica. Não vamos achar que vai ser sempre assim. A nossa grande preocupação é 2023. Estamos a vender para este ano pelo quarto ano civil consecutivo e, portanto, só a partir de setembro começamos a trabalhar o próximo, voltam a ser os 10/11 meses de trabalho habitual, aí é que vamos ver o impacto e se estamos mais festivaleiros ou não.

A uma semana de começar a 14.ª edição do Alive e de este recinto estar quase pronto para receber nalguns dias mais de 50 mil pessoas, a pandemia torna este regresso ainda mais especial? Este setor é muito resiliente. Desde o início da pandemia sempre dissemos que íamos ser os primeiros a fechar e os últimos a abrir, e foi o que aconteceu. Em todas as indústrias houve pessoas que mudaram de profissão. Aqui, felizmente, tivemos muitos que foram resilientes, sofreram e quiseram continuar nesta área. Nem todos. Mas isso tornou possível, pelo menos, que tudo corresse agora de uma forma quase normal. Em muitos países isso não está a acontecer. Noutros países há festivais a cancelarem porque nem palco têm. A alegria que foi quando fizemos aqui [Passeio Marítimo de Algés] os Guns N’ Roses [no passado dia 4 de junho]… Eu espero não estar a cometer nenhuma falha de memória, mas, nos capítulos dos grandes concertos, tínhamos tido o Ed Sheeran, nos dias 1 e 2 de junho de 2019, no estádio da Luz, e agora os Guns N’ Roses. Temos um hiato de três anos e ver a alegria dos profissionais, quando estávamos a lançar a chamada primeira pedra da montagem de um grande evento, foi uma coisa única. Nós fomos proibidos de trabalhar. E a dignidade de obter o nosso ganha-pão fruto do nosso trabalho, é uma das primeiras dignidades que o ser humano tem que ter.

O primeiro festival que organizou foi há quase 30 anos… Faço festivais desde 1995, chegar a 2020 e não ter um festival foi uma coisa muito estranha. Aliás, um dos meus filhos faz hoje 27 anos, eu digo que é o bebé dos festivais, porque ele nasceu no dia 28 de junho de 1995 e o primeiro festival em que eu estive envolvido, e que foi a génese de todos os festivais (Super Bock Super Rock), aconteceu logo a seguir. Passaram 27 anos e estar parado nos últimos dois foi muito estranho.

Quais são as principais diferenças que observa? Um nível de exigência muito maior do público, cada vez quer artistas maiores. Por exemplo, muita gente achou que não ia funcionar pôr num grande festival de música um palco de comédia e, acima de tudo, pôr num grande festival de música um palco de fado. E resultaram os dois. As pessoas antes iam a um festival porque estava lá um cabeça de cartaz e ponto final. Mas isso acaba por não ser um festival. Festival é esta diversidade de gostos. Só falta teatro, mas é preciso espaço.

É um dos próximos objetivos? Claro. Eu acho que é fundamental. Mas Portugal padece de um problema: ninguém projeta um espaço para fazer um grande evento no país, não existe. Nós temos sempre que adaptar os espaços: o Parque da Bela Vista é um parque adaptado, utiliza-se para fazer espetáculos, mas não está preparado para isso. O Passeio Marítimo de Algés também adptámos. 

Não chegou a falar da relação próxima e familiar que sempre teve com o teatro… Isso foi uma coisa interessante, que não se tem feito em Portugal, só se fez na Primeira República. O Estado, quando enfrentou a bancarrota, e como não tinha dinheiro para a Cultura, entregou a gestão de teatros públicos a privados. O meu bisavô geriu o Teatro São Carlos, a família Rey Colaço o Teatro D. Maria, mas agora não, agora é tabu, é preferível ter aquilo fechado do que alimentar uma atividade económica… 

Com um passado já ligado aos programas culturais, porque é que os seus pais queriam tanto que fosse para medicina? Não era uma indústria organizada, a Cultura era sempre aquela área que os pais não queriam para os seus filhos, não queriam que os filhos fossem atores, músicos… Talvez até por defeito de formação do Estado Novo, toda a gente desejava que os filhos tivessem um bom emprego, nem sequer era que fossem empreendedores.

E assim acaba por ir para Gestão… Fui para Gestão, mas quando fui para a faculdade o meu pai disse-me: ‘Pelo menos Economia’. Porque Gestão já estava ligada ao empreendedorismo. De facto, a Cultura era muito instável, ainda hoje é, as pessoas mais ligadas à criatividade e à performance são empresários de si próprios. Aquilo que erradamente chamam de intermitência dos profissionais da Cultura está ligado à falta de locais de trabalho. Ninguém tem coragem de assumir isto. E depois está também relacionado com os hábitos culturais. Se as pessoas não vão às bilheteiras e não há mais público também há menos trabalho. A intermitência resolve-se com a criação de públicos e locais de trabalho e não com estatutos que não têm sentido nenhum e são miseráveis. 

Daí a importância da mudança desde a raiz, como os programas escolares? É inenarrável como os miúdos têm aulas de música, claro que não é de uma forma global, acredito que há professores que tenham interesse em ensinar alguma coisa, mas os programas não lhes dão nada, estão feitos para não aprenderem nada. Eu ainda sou um privilegiado, sei dizer a escala musical de trás para a frente, mas hoje em dia ninguém sabe, portanto significa que não aprenderam, que foi tudo muito superficial. Mas isso já são outras políticas. Os portugueses são um povo muito preconceituoso e acanhado e a melhor forma de libertar as pessoas são as artes. A arte liberta o ser humano e, se calhar, por isso é que não se ensina artes. Porque o problema da Cultura também é um problema político, porque um povo mais culto é um povo que questiona e este é o povo que menos questiona no mundo. Vimos agora na pandemia, fomos o único povo que não questionou o facto de nos mandarem estar em casa e não nos deixarem trabalhar. Fomos o único.

Os portugueses são um povo conformado? Somos um povo conformado, cada vez mais. E temos medo. Os portugueses têm medo dos políticos, de ser perseguidos. É uma coisa estranha. Mas nós vemos que os empresários têm medo, às vezes têm razão mas não reclamam porque têm medo de ser perseguidos. Isto não tem a ver com este Governo, é uma questão de regime. Este é um país muito estranho. Eu pelo menos tenho uma perspetiva de país diferente. Acho que nós devíamos ter um país em que o nosso objetivo fosse uma sociedade justa e perfeita e as pessoas fossem tão cumpridoras que não havia multas, porque toda a gente cumpria. Agora, quando se põe num Orçamento um objetivo de multa, isto é completamente anacrónico, absolutamente esquizofrénico. Todos os anos, independentemente de quem está no poder, a rubrica de multas aumenta – quando se criam objetivos orçamentais, criam-se injustiças, isto é completamente errado. As multas deviam ser uma receita extraordinária, constitucionalmente não faz sentido nenhum a multa ser uma receita previsível, porque se todos cumprirem não há multas, não há receita, portanto o cumprimento orçamental não se compadece com o facto de as pessoas não cumprirem as regras. As regras, claro, definidas pelos políticos, porque nunca nos perguntaram se concordamos com elas. Também é uma coisa engraçada, fazemos 48 anos de liberdade, mas a realidade é que todos os dias lançam mais uma sem nos perguntar se concordamos. É uma coisa extraordinária, é um princípio de liberdade muito estranho. Quem o faz não creio que o faça com um propósito, acha que está a fazer bem, está é completamente errado.

Trabalhou no mercado financeiro. Que recordações guarda desse tempo? Foram sete anos, sempre em simultâneo com os festivais. Começava às 8h30 e acabava à 00h00. Adorei trabalhar nos mercados financeiros, quando havia mercados financeiros, agora não há em Portugal. Era um espetáculo, era uma época em que os bancos ganhavam dinheiro porque a área financeira era um dos principais ativos do banco para ganhar dinheiro. Agora não, agora é só a área comercial e comissões, portanto os bancos estão na miséria que estão. Infelizmente as administrações, como não dominam a área financeira, têm medo, mas as salas de mercado, de facto, tinham um poder inacreditável. Por exemplo, nos bancos o presidente não pode tomar uma decisão sozinho, precisa de uma segunda assinatura, mas um operador na sala de mercados é só ele a decidir: ‘Vendo’, ‘Compro’. Não há cá segunda assinatura. Como houve receio de uma classe que só dava dinheiro aos bancos cortou-se com isso e, depois, as consequências nos resultados da banca.

Gosta de ter o poder de decisão? O controlo? O poder de decisão é uma coisa boa e má ao mesmo tempo. Quando se tem que decidir sozinho é muito difícil, todos nós temos dúvidas. Aqueles que acham que sabem tudo e têm a certeza de tudo estão completamente errados. Sou daqueles que acho que todos os dias estou a aprender. Todos os dias aprendemos qualquer coisa nova. E temos de pensar que não sabemos tudo, o que é difícil às vezes porque quando adquirimos determinada dimensão e temos capacidade para determinadas coisas, podemos cair no erro de achar que somos os maiores… mas não somos. Isso é um exercício que se tem que fazer sempre para continuar a fazer bem ou a tentar melhorar.

Qual o concerto a que já assistiu mais vezes? E aquele que independentemente das vezes que viu, continuaria a ir? Sempre tive o privilégio de ver tudo, desde folclore, ópera, ballet, rock, música popular portuguesa, fado, por isso tenho muita dificuldade… Mas aqueles que me levariam sempre a viajar para vê-los… talvez Coldplay, Radiohead e Pearl Jam. Mas é um gosto pessoal particular. Em agosto, por exemplo, vou ao festival de Salzburgo, vou ver quatro óperas e três concertos: Aida, Flauta Mágica e O Barbeiro de Sevilha. Faz bem para limpar a cabeça do rock.  

Quando vai a um concerto ou festival consegue desfrutar ou está sempre a reparar nos pormenores técnicos? Num festival de ópera não, não é uma área que domine e no caso de Salzburgo pauta-se muito por ter produções modernistas de espetáculos clássicos. É uma experiência mesmo como espectador. Outra coisa inacreditável: Portugal é o único país da Europa que não tem um festival de ópera. É o Portugal dos Pequenitos. 

Quais as situações mais caricatas que já lhe aconteceram com os artistas? Consegue nomear três? Não se podem contar. Mas sem referir nomes, uma vez ligaram-me de Madrid a dizer que o baterista foi para o hospital porque enfiou a baqueta no olho – era o cabeça de cartaz no dia seguinte em Lisboa. Ligaram-me mais tarde a dizer que já tinha ido para o avião. Ninguém soube. O baterista fez o espetáculo de óculos escuros, correu tudo bem, mas podia ter sido cancelado. Outra história foi numa das primeiras edições do Alive, também relacionada com o cabeça de cartaz, liga-me o manager da banda a dizer que o avião voltou para trás, que não havia ligações, que não iam chegar a tempo. Ligámos para uma empresa de charters e, por sorte, havia um avião. Subiram ao palco mesmo na hora certa. Depois há aquelas que não se podem contar…

E os pedidos especiais por parte dos artistas? Alguns mais irreverentes? Há organizações que gostam de transformar os artistas em jardins zoológicos, mas isto é uma indústria muito profissional e muito séria. Há muitos anos dei uma entrevista à Marketeer e, depois, estava no aeroporto para apanhar um voo para Paris e veio um senhor ter comigo e disse: «O senhor não me conhece, sou administrador da Edifer, e queria dar-lhe os parabéns porque li uma entrevista sua e achei extraordinária». E o que é que eu disse na entrevista? Que os engenheiros das grandes empresas de construção deviam estagiar numa empresa de espetáculos para saberem o que é cumprir prazos. Porque todos nós sabemos que quando há uma obra nunca se cumprem os prazos, nunca. E toda a gente acha isso normal. Na nossa indústria temos uma escola talvez muito baseada nos militares, portanto os prazos são para cumprir. Isso só é possível não só porque as pessoas trabalham com amor à arte, mas, acima de tudo, porque há organização. Quando os artistas pedem determinadas coisas, prende-se somente com o facto de, quando nós andamos de terra em terra, termos que nos sentir em casa, porque é uma vida muito dura. Não se pense que é só mordomias. Eles chegam aqui a dormir num autocarro. Do ponto de vista psicológico, a pessoa também tem que se sentir em casa. Isto é uma vida muito dura, é alta competição. A própria seleção de futebol, quando viaja, leva o cozinheiro, água… Porquê? Porque basta a diferença da comida ou da própria água para ter ali um desarranjo qualquer. O artista está em palco duas horas, muitas vezes a dançar, a cantar, a correr… Nós, como turistas, quantas vezes não acontece estarmos dois dias empenados porque comemos qualquer coisa que não caiu bem… Quando comecei a trabalhar no meio, há 30 anos, havia de facto uma excentricidade, mas estava ligada ao marketing. Lembro-me de um grupo, há muitos anos, em que os elementos supostamente nem tomavam banho, eram todos desestruturados; depois, afinal eram todos casados, com a família organizada… Há muitos anos íamos ao circo ver o Homem Elefante, um homem defeituoso, as pessoas mais facilmente compram bilhete para ver um excêntrico do que uma pessoa normal, penso que houve uma época em que isso foi assim, hoje em dia já não há nada disso. Mas, claro, um artista é um artista. E se for um artista conhecido em todo o lado, não é fácil viver com isso. Todos nós temos as nossas excentricidades, mesmo sem sermos artistas.

Então nunca apanhou algum artista que quisesse smarties de uma só cor, por exemplo? Não, não, nada disso! 

Mantem alguma relação de amizade com alguns? Não. Um artista anda de terra em terra. Se a cada cidade onde vai tem que cumprimentar o promotor, o diretor do hotel, o chefe de segurança… Eu acho que eles gostam de trabalhar connosco também por isso. No nosso backstage não se passa nada, há muitos festivais, cá e lá fora, em que o backstage tem zonas vip… Sob o ponto de vista comercial é o melhor que se pode ter, mas o dinheiro não paga tudo. Nós vivemos dos artistas, queremos construir uma indústria, não queremos que seja um circo do início do séc. XX. Queremos que seja uma indústria respeitada. Se eles tiverem as melhores condições, dão os melhores concertos, que é isso que esperamos dos artistas.

Além do filho ‘bebé dos festivais’ de quem já falou, tem mais dois, a seguir também os seus passos neste meio. Sempre quis que assim fosse? Todos queremos o melhor para as pessoas de que gostamos, mas não podemos nem devemos condicionar. Sei lá qual vai ser o futuro da indústria, na pandemia até me assustei, falava-se tanto em digitalização, mas sempre defendi e achei que nada substitui uma experiência ao vivo. É como o teatro, não tem piada nenhuma ver na televisão. Já quando apareceram os DVD’s as pessoas diziam isso, que iam passar a comprar concertos em DVD e deixar de ir aos concertos… essa ideia morreu completamente. O ser humano é um animal de relacionamento, não é de isolamento.  

Quando se reformar, mantém a ideia de ir viver para o nordeste brasileiro? Sim, sim. Temperatura estável, entre os 22 e os 28 graus, é bom andar de havaianas e calções o ano inteiro, tendo obviamente a possibilidade de viajar e vir à nossa terrinha. Portugal podia ser o melhor país, mas parece que não queremos, é uma sina qualquer que a gente tem. Nós temos tudo para ser o primeiro, mas acho que às vezes pensamos pequenino, temos que começar a pensar grande. Mas não é possível ser grande quando um vereador de uma câmara ganha dois mil euros ou um secretário de Estado ou ministro ganham o que ganham… Das duas uma: ou contratamos ricos ou então temos que balizar por baixo. É evidente que também temos pessoas boas, que acreditam na causa pública, mas têm uma vida miserável. Já me cruzei com várias pessoas que estiveram no Governo durante quatros anos e que me disseram que consumiram as economias que tinham durante esse período – filhos, contas, pagar colégios… é impossível. Mas pronto, nós insistimos nisto, achamos que assim é que está bem. Mas é completamente errado. O Estado tem que ser visto como uma empresa, tem que ser gerido como uma empresa, não esquecendo a sua vertente social. 

Que música dedicaria ao primeiro-ministro? E ao Presidente da República? Por acaso estamos a viver um momento particularmente histórico. Pela primeira vez temos um primeiro-ministro, um Presidente da República, os presidentes das principais câmaras – Lisboa, Oeiras, Cascais, Braga, Porto –, todos gostam de música, de Cultura, por isso só é preciso dar um passo em frente. Tivemos vários presidentes de câmaras ou primeiros-ministros que era raro ver num espetáculo. Agora temos pessoas que gostam. E estou a falar de pessoas que vejo a comprar bilhetes. Nunca tivemos os astros tão juntos como agora. Por isso a música que eu dedicaria ao primeiro-ministro é a do Jorge Palma – Ai, Portugal, Portugal/ De que é que tu estás à espera?