Sonhos que podem ser partilhados

Arthur Danto conseguiu em pouco mais de 150 páginas clarificar uma das questões mais espinhosas e mais propícias à especulação teórica dos últimos séculos.

Stephen Hawking, o brilhante astrofísico que explicou o universo a partir da sua cadeira de rodas, não gostava de incluir fórmulas matemáticas nos seus livros. Dizia que por cada fórmula impressa na página havia uma fatia importante de leitores que punham o livro de parte e já não voltavam a pegar-lhe.

Filosofia da arte: dito assim, parece um conceito não menos intimidatório do que qualquer fórmula matemática. E, no entanto, pela pena de Arthur C. Danto, filósofo e crítico de arte norte-americano falecido em 2013, tudo é cristalino e acessível como um céu semeado de estrelas numa noite límpida.

No seu último livro, What Art Is (O Que a Arte É), Danto consegue em pouco mais de 150 páginas clarificar uma das questões mais espinhosas e mais propícias à especulação teórica dos últimos séculos. O que é a arte e como defini-la? Quais as qualidades que fazem de um objeto uma obra de arte? E fá-lo com uma argumentação tão engenhosa quanto convincente. 

Começa por recordar a sua experiência de ver na Stable Gallery em Nova Iorque, em 1964, uma exposição de caixas de Andy Warhol empilhadas iguais aos caixotes de cartão prensado usados nos supermercados para embalar produtos de consumo, como sopas enlatadas, cereais e sabonetes.

As ‘imitações’ de Warhol eram aparentemente réplicas perfeitas dos caixotes originais dos supermercados. O que fazia com que umas fossem consideradas arte e os outros não? «A Brillo Box tornou-se uma espécie de Pedra da Roseta, uma vez que nos permitia lidar com duas linguagens – a linguagem da arte e a linguagem da realidade», escreveu Danto numa genial analogia. Tal como a pedra trazida do Egipto permitiu a Champollion decifrar os hieróglifos, a obra de Warhol inspirada nos caixotes industriais de sabonetes Brillo permitiria resolver o enigma da arte. «A minha ideia é que, se não havia diferenças visíveis, tinha de haver diferenças invisíveis», deduz.

Uma dessas diferenças consistia no facto de as obras de Warhol oferecerem um comentário. «Ele considerava o mundo comum esteticamente belo, e admirava grandemente as coisas que […] os heróis do expressionismo abstrato teriam ignorado ou condenado. Andy adorava as superfícies da vida quotidiana, o valor nutritivo e a previsibilidade dos alimentos enlatados, a poética do lugar-comum». Esta abordagem, «mostra uma mudança filosófica da rejeição da sociedade industrial […] para a aprovação», conclui. Ao mesmo tempo, havia uma crítica à arte que então dominava os meios cultos nova-iorquinos, o expressionismo abstrato, que procurava a autenticidade da expressão individual através do afastamento, a todos os níveis, da sociedade de consumo.

Após convocar filósofos da ‘linha dura’ como Platão e Wittgenstein, Danto acaba por concluir que as obras de arte são «sonhos despertos». Que têm forma e significado, e existem numa espécie de dimensão paralela ao mundo do dia-a-dia, tal como os sonhos se passam num plano paralelo à realidade. Mas, ao contrário dos sonhos que sonhamos de noite, estes podem ser partilhados – e por isso lhes chama «sonhos despertos».

De quantas definições de arte foram avançadas, creio que está é uma das mais poéticas e certeiras. E também uma das mais acessíveis. Tal como o astrofísico Stephen Hawking, que referi no início, Arthur Danto tinha um dom para explicar de forma simples o que é complicado. E, com isso, mostrou-nos também que a filosofia não tem de ser sempre uma engrenagem de conceitos impenetráveis, reservada a uns quantos iniciados.