Pelos passos da rainha…

A mãe soltou um dia: «Antes rainha por um dia do que duquesa toda a vida!». A filha não pode ser rainha de Inglaterra, apesar de ter casado com Carlos II, porque era católica. O povo não a tolerava e o marido deu-lhe cabo da existência. Ela, em troca, levou-lhes o chá…

Uma destas madrugadas, ao sair do Café do Paço, já retemperado com um daqueles pregos como não há outros em Lisboa àquela hora, e a muito poucas diferentes horas, dei por mim a fitar o busto de Catarina Henriqueta, que ali morreu, mesmo em frente, no Palácio da Bemposta, embora hoje em dia esteja, como dizer?, estacionada no Convento de São Vicente de Fora, o Panteão dos Braganças, depois de o seu cadáver já ter passado pelos Jerónimos. Coisas que fazem com a gente depois de mortos. O que vale é que já não estamos por cá para suportar a estucha, é só a carcaça. Quando escrevi que dei por mim a fitar o busto de Catarina, queria dizer busto de busto, estatueta de meio-corpo, honny soi qui mal y pense, era o que faltava estar de olhos fixos nos peitos da senhora que ainda por cima já tratou de entregar a alma ao criador no dia 31 de Dezembro de 1705. Há malucos para tudo, mas não me metam em confusões. 

Foi, portanto, no Paço da Rainha que resolvi seguir os passos da rainha que teve a sorte de ser consorte do rei de Inglaterra, ou melhor, quem acabou por ter sorte foi ele, Carlos II do nome, já que a nossa infanta, filha de D. João IV e de Dona Luísa de Gusmão, nunca envergonhou a família (ao contrário de outros Braganças, a última casa real portuguesa) enquanto o marido teve uma vida de malandro, já para não dizer de canalha, e irei explicar porquê a devido tempo, se tiverem paciência para ir lendo as notas que tomei no meu caderninho depois de ter chegado a casa.

Vamos por partes. Entre Carlos e Catarina havia em comum fazerem parte de épocas de restauração. A menina, vinda ao mundo no dia 25 de Novembro de 1638, no Paço Ducal de Vila Viçosa, era filha do primeiro rei de Portugal após a Restauração de 1640 que nos libertou do fardo dos Felipes com E. O moço, oito ano mais velho, viu a luz em Londres, no dia 29 de Maio de 1930, e andou perdido em exílios pela Europa enquanto os ingleses passaram pela, pelos vistos, tão dolorosa experiência republicana dos Cromwell que nunca mais quiseram outra. Do pai dele, Carlos I, conhecemos o triste fim que lhe foi ditado pelo rebelde Oliver que tratou de mandar executá-lo no Palácio de Whitehall no auge da Guerra Civil Inglesa. Da mãe dela, Luisa María Francisca de Guzmán y Sandoval, da Casa Ducal de Medina-Sidónia, aprendemos nos bancos de escola que não tinha pachorra para duques e que terá soltado, num momento de absoluto tédio perante tal vida de segunda apanha, a célebre frase: «Antes rainha por um dia do que duquesa toda a vida». Parece que o dichote de Luísa não terá sido bem assim, como nos contaram, abusando da ignorância própria da nossa juventude de calões (por mim e por mais meia-dúzia de colegas falo), e mais algo do género: «Antes morrer reinando do que acabar servindo». Pouco importa. Pela boca apodrece o peixe, ou lá o que é, e pela boca da mãe de Catarina ficamos com a ideia muito clara de que ambição não era coisa que lhe faltasse. E, assim sendo, tratou de  procurar para as filhas – teve outra, chamada Joana, mais velha, a Princesa da Beira, que se foi desta para melhor por via de uma doença prolongada que a matou na formosura dos seus 17 anos – maridos que valessem a pena, sendo que um dos que teve em vista para Catarina (já que Joana não lhe deu tempo para muitos planos) foi Luís XIV de França, esse mesmo, o Rei-Sol, um excelente partido como está bem de ver e que ainda por cima reinou sobre os franceses durante 72 anos, algo que só está ao alcance de uma Isabel II, ou coisa que o valha. Luís estava mais virado para os ventos de Espanha, que podem não ser bons para nós mas foram razoáveis para o casamento dele, tomando como esposa e rainha Maria Teresa de Espanha. Nesse tempo, como agora, casava-se muito por interesse. E Catarina e Carlos viram-se unidos por um contrato que começou a ser negociado ainda no tempo em que Carlos I tinha a cabeça no sítio e uma coroa por cima dela. Gente importante da Corte Portuguesa e da Corte Inglesa deu entre si um tremendo shake-hands no dia 23 de Junho de 1661. Tudo tratado! E casamento marcado para Maio do ano seguinte. Nunca ninguém parece ter ter pedido a opinião de Catarina sobre a matéria em causa, e se pediram não fizeram publicidade em relação à vontade da infanta. Já Dona Gusmão terá ficado bastante satisfeita, assim como o marido, Dom João, e ainda se está bem para se saber porquê.

O contrato leonino!

Se na escola aprendi umas matérias, na faculdade aprendi outras. O olvido terá tomado conta da maior parte, mas restam-me sussurros vindo dos confins da memória sobre as Cláusulas ou Contratos Leoninos. Sem entrar em grandes pormenores (já confessei a minha tendência para o esquecimento de determinadas fases da minha formação académica), diria que o contrato de casamento entre Carlos II de Inglaterra e Catarina de Bragança terá sido construído de forma a ferir a boa-fé objetiva com o intuito de gerar enormes benefícios para um dos lados da relação, lesando os direitos da outra parte. A outra parte éramos nós, os portugueses, claro! Não estavam à espera que os ingleses se deixassem enganar numa questão de negócios. Podemos ser larápios, mas eles são piratas. Temos muito a aprender com eles.

Portanto: Carlos ganhou uma mulher bastante mais nova, que nem sequer teve o direito de ser rainha de Inglaterra pelo facto de ser católica, e pelo caminho a Coroa Inglesa empossou a cidade de Tânger, no norte de África, de onde vinham as tangerinas que alimentavam a gulodice de Catarina por geleia, as sete ilhas que compunham o porto de Bombaim, na Costa do Malabar, na Índia, e ainda mais ou menos três milhões de coroas. Calma que não é tudo. Todos os ingleses que vivessem em Portugal obtinham imediata liberdade de comércio e de credo. Os barcos sob bandeira inglesa recebiam privilégio nas rotas comerciais entre a Europa e o Brasil e entre a Europa e os territórios portugueses no oriente. Em troca, do alto da sua imensa generosidade recebíamos o apoio naval e militar necessário para continuarmos independentes de Espanha. Se isto não é leonino, vou ali e já venho, como diria o Avô Gasosa do Mário Henrique Leiria.

Na madrugada de 13 de Maio de 1662, pela calada da escuridão, como se viajasse embaraçada, Catarina Henriqueta entreviu as rochas brancas da Grande Ilha. Desembarcaria em Portsmouth no dia seguinte, preparada para conhecer finalmente o charmoso Carlos Stuart, segundo do nome, rei de Inglaterra, da Escócia e da Irlanda, seu marido até à hora da morte – a dele chegou primeiro, mas também não admira porque era mais velho e passava os dias na pândega. Há que dizer que Carlos bem podia gabar-se de ser um Stuart, mas era um bocado mal-educado. Pode haver quem o defenda, brandindo o argumento de que era um tipo muito ocupado ou que passara por uma infância bastante atribulada com aquela coisa de ter o pai executado em público, algo sem dúvida muito pouco agradável, mas nada desculpa a sua falta de chá ao apresentar-se perante a noiva apenas no dia 20, deixando-a à espera numa terriola de marinheiros e pescadores que fedia a maresia e a salsugem. Catarina aguentou-se firme. É capaz de ter bebido um chá ou outro em chávenas de porcelana vindas da China, aliás foi ela que implantou em Inglaterra o hábito do chá das cinco – os ingleses nem sabiam ao certo o que era chá – por muito pouca pontualidade que Carlos demonstrasse. A verdade é que também não podia fazer nada contra senão amuar já que o contrato estava assinado e havia que o cumprir. O casamento teve lugar no dia 21, embora este tenha ficado basicamente por cumprir por parte do rei. Depois puseram-se em marcha para Londres, com uma enorme procissão atrás, composta por gente ligada a Carlos e pela comitiva que viajara com Catarina desde Lisboa. Houve uma festa de arromba, com charangas e gaitas de foles e muita bebida à mistura, mas muito pouco sincera, a meu ver, depois de ter feito as minhas pesquisas. O povo inglês estava decididamente contra o casamento do seu rei com uma católica. Já tinham problemas com a Igreja que chegassem e sobrassem. Queriam uma protestante, mas pelos visto Catarina nem contra os atrasos dos marido protestava. Por mim, tiveram o que mereceram. E a infanta de Bragança cedo se viu metida num sarilho que nunca esteve nos seus horizontes. Nem, se calhar, nos da mãe Luísa, embora já tenhamos percebido que tipo de horizontes eram os desta.

Um marido bandalho

Carlos II era, definitivamente, um rabo-de-saias. Esse sim, deve ter olhado para o busto de Catarina com água a escorrer-lhe dos cantos da boca, embora se tenha fartado da rapariga num instante. Aliás, parece que o busto de Catarina não era por aí além, ou pelo menos as más-línguas que rodeavam o rei preocupavam-se mais com o facto de ela ter uns dentes demasiado grandes para a largura da boca, invocando até este argumento para que Carlos avançasse para um rápido divórcio e desposasse, em seguida, uma anglicana como devia ter sido.

Há muito pouco de positivo a dizer de Carlos II como marido, e estou aqui a fazer o papel de advogado da menina Bragança como é minha obrigação, afinal cruzo-me com o seu busto (salvo seja) em muitas madrugadas. Catarina desiludiu-o muito ao parir três crianças mortas, mas a verdade é que se lhe conheciam por demais as amantes, quatro delas senhoras que o acompanhavam em todos os bailes e tarantantã e eram habitantes do palácio real: Lucy Walter, Barbara Villiers, Nell Gwynne e Louise de Keroualle. Entre as gravidezes, a infanta de Portugal foi sendo visitada por todas elas, caindo num estado depressivo de tal ordem que Carlos receou que ficasse louca. Sentia uma certa afeição pela esposa, mas era mais o tipo de sentimento que se dedica a um labrador da Nova Escócia do que verdadeiramente a uma mulher. Convenceu-a de que tinha dado à luz dois bonitos rapazes e uma garota perfeita ao mesmo tempo que lhe garantia que os três pequerruchos estavam ao cuidado de nannies extremosas e que a presença delas junto à mãe, no estado em que estava, poderia provocar-lhes estados de ansiedade praticamente mortais. Se Catarina acreditou ou não, não sabemos. Enquanto a mãe Luísa ficou famosa pela sua tirada, a filha ficou bem mais conhecida pelo seu silêncio. Por seu lado, absolutamente abandalhado como marido, Carlos gabava-se de ter 39 amantes, tantas como os regulamentos da Igreja Anglicana. Um esparvoado. Que teve 16 filhos bastardos é certo! A política pouco lhe interessava. Tinha conselheiros suficientes para tratarem desses assuntos extremamente maçadores, permitindo-lhe tempo livre para uma vida de total deboche sexual.

Pelo caminho, teve uma atitude de respeito para com a esposa quando a defendeu rijamente da conspiração levada a cabo por um traste chamado Titus Oates que quis convencer a Corte de que Catarina estava envolvida numa tramoia para assassinar o rei, juntamente com o arcebispo de Dublin e mais 541 jesuítas, num complô católico desenhado pelo Papa e que podia provar-se pela leitura de inúmeros documentos que levara o seu tempo a falsificar. Os documentos eram tão escandalosamente aldrabados e a reputação de Oates tão frágil, que Carlos não precisou de se esforçar muito para tirar a sua consorte de chatices. No entanto, na sua ingenuidade, Catarina resolveu ficar-lhe eternamente grata, de tal forma que, quando o rei resolveu finalmente morrer, atacado por uma apoplexia inevitável para um ser humano que usava e abusava do corpo que a natureza lhe fornecera, ainda lhe escreveu para o leito de defunto: «Peço que me perdoe por todo o mal que possa ter-lhe feito durante a vida». Corria o dia 5 de Fevereiro de 1685. Carlos passou a defunto na manhã seguinte, mas ainda terá tido tempo para balbuciar qualquer coisa como: «Poor woman! she asks for my pardon? I beg hers with all my heart; take her back that answer». Pode ser que seja uma simples fantasia, mas li a frase e procurei levá-la a sério porque a pobre mulher bem o merecia. Aguentou-se por Inglaterra até Março de 1692, vindo depois refugiar-se no Palácio da Bemposta que ganhou o nome de Paço da Rainha. Agora é um quartel da Guarda Republicana, mas o busto dela está lá. Cumprimento-a sempre com ternura quando saio do Paço. Do Café, quero dizer.