Propaganda política. AR em choque frontal com a União Europeia

A UE quer um regulamento uniforme sobre a propaganda política. Na AR, a maioria dos partidos queria o Governo a votar contra a proposta em Conselho Europeu, mas o PS fez passar uma recomendação para que o Executivo português apenas se abstenha.   

Bruxelas quer regular a propaganda política em toda a União Europeia, tendo o Parlamento Europeu e o Conselho avançado com uma proposta que pretende uniformizar conceitos, criar regras comuns para um mercado único de serviços de propaganda política e introduzir padrões de transparência nas campanhas eleitorais. Em Portugal, a proposta não foi bem recebida e levou a que saísse da da Comissão de Assuntos Europeus um projeto de resolução que recomenda ao Governo que se abstenha nas instâncias europeias onde for tomada qualquer decisão sobre a matéria.

A resolução, publicada em Diário da República na semana passada, levanta preocupações ao nível do conteúdo da proposta europeia, mas também no que se refere à intervenção da União Europeia no quadro jurídico dos Estados-membros. No texto subscrito pelo socialista Luís Capoulas Santos, argumenta-se que a norma que estipula as definições relevantes para efeitos do regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho “suscita algumas dificuldades”, desde logo sobre o que pode ser considerado propaganda política. “O conceito de propaganda política afigura-se desnecessariamente difuso”, lê-se.

Bruxelas define como propaganda política “a preparação, colocação, promoção, publicação ou difusão, por qualquer meio de uma mensagem por, para ou em nome de um interveniente político, a menos que seja de natureza puramente particular; ou que seja suscetível de influenciar o resultado de uma eleição ou referendo, de um processo legislativo ou regulamentar ou de um comportamento eleitoral”. Esta definição, segundo alerta a Comissão de Assuntos Europeus, pode potencialmente abranger matérias que abarcam campanhas destinadas a influenciar a tomada de decisão, matéria muito mais próxima da regulamentação do lobbying e da atividade da representação de interesses, que não está ainda regulamentada em Portugal.

“Interveniente”, “patrocinador”, “período eleitoral” e “editor de propaganda” são outros conceitos que despertaram perplexidade no Parlamento português. Por exemplo, o conceito de “interveniente político” abrange os partidos políticos, as alianças políticas (coligações), os partidos políticos europeus, os candidatos em eleições normais, mas também a cargos de liderança partidária. Na lei portuguesa, os direitos e deveres dos candidatos a lideranças partidárias são completamente diferentes dos dos candidatos em atos eleitorais públicos, uma vez que são os partidos que criam as regras para as suas eleições internas.

Além disso, também são levantadas dúvidas na forma como esta proposta se articularia com o quadro jurídico português, no que concerne ao direito de antena ou à proibição da compra de publicidade comercial para fins de campanha eleitoral, pois um dos pressupostos desta intervenção que é a existência de um mercado de comunicação e propaganda política esbarra diretamente com essa lei.

“No quadro da tutela de direitos fundamentais, o regulamento não traça sempre fronteiras claras entre o que se reconduziria à esfera de propaganda política e o que se poderia limitar a representar o exercício das liberdades fundamentais de expressão ou de imprensa”, acrescenta-se.

Ademais, a resolução alerta ainda que esta é uma matéria que convoca a uma reflexão mais prolongada no tempo e que não pode ser despachada de forma “precoce”, em consequência de produzir o efeito inverso ao pretendido pela União Europeia.

 

partidos queriam parecer contra proposta da UE Na votação na Assembleia da República, a 17 de junho, o PS ficou isolado a votar a resolução da Comissão de Assuntos Europeus, apenas com a abstenção do PAN e o voto contra dos restantes partidos. Em plenário todos os grupos parlamentares se mostraram críticos do texto emanado de Bruxelas, mas os deputados, à exceção dos socialistas que aprovaram a resolução dada a maioria absoluta, não queriam apenas que o Governo se abstivesse nas diferentes configurações do Conselho Europeu onde fosse tomada uma decisão sobre a proposta de regulamento da transparência e o direcionamento da propaganda política. Quase toda a oposição queria mesmo um parecer que recomendasse ao Governo que fosse contra a proposta europeia.

Somente o Livre, o único partido europeísta na sua génese, se mostrou favorável ao regulamento europeu.

O PSD considerou que estão em causa “conceitos vagos” que “toldam a sua compreensão” e que podem “induzir em erro a sua intenção”, ao não se referir apenas às campanhas eleitorais mas também a processos da representação de interesses “deixando no ar o corredor ao lóbi”.

O Chega, além de criticar os “conceitos nem sempre claros, pouco precisos e muitas vezes equívocos” da proposta, recordou também que as obrigações associadas ao aviso de transparência fazem não só “aumentar os custos dos associados à comunicação pretendida, como podem colocar em causa a capacidade de comunicação de partidos de pequena ou de média dimensão”. O partido liderado por André Ventura alertou ainda que as exigências de informações a fornecer são “violadoras de uma certa reserva de confidencialidade fundamental em qualquer campanha política ou eleitoral”. Os liberais também acusaram o Parlamento Europeu de pôr em causa o direito à liberdade de expressão, entre outros direitos.

À esquerda, PCP e Bloco alegaram mesmo que a proposta colide com as competências do Estado português em matéria de soberania nacional, suscitando “sérias dúvidas” sobre o cumprimento dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Esta posição foi acompanhada pela deputada única do PAN que sublinhou que “a reboque das preocupações com a transparência” a UE quer “uma porta aberta para a matéria de regulamentação em questões de soberania nacional”. O PS também reconheceu que a proposta pode “alterar potencialmente as ordens jurídico constitucionais internas ou pelo menos as disposições eleitorais e políticas sensíveis que devem ficar na esfera dos Estados-membros”.

Esta não será a ultima palavra da Assembleia da República nesta matéria, que se poderá ainda pronunciar em sede dos princípios de subsidiariedade e proporcionalidade. Em Bruxelas, a intenção é que as novas regras estejam em vigor antes das eleições europeias de 2024. A proposta foi de resto nomeada ontem como um dos assuntos prioritários para o Comissão do Mercado Interno e da Proteção dos Consumidores do Parlamento Europeu pela Presidência Checa do Conselho da UE no que toca à procura de consensos.