Volta à França. Aventura de um português sem água para lá dos Pirenéus

1956 – Alves Barbosa tornou-se no primeiro português (com licença de Custódio dos Reis) a correr a Volta à França, revelando-se um ciclista ousado e de qualidade que somou elogios um pouco por toda a parte. E terminou em 10º! A sua popularidade ganhou foros de avalancha.

Terça-feira, dia 31 de Julho de 1956. A imprensa portuguesa notifica na generalidade: «No avião da TAP chega amanhã ao aeroporto, às 19h40, vindo de Paris, o ciclista Alves Barbosa». Parecia uma notícia de final do século anterior, anunciando as partidas e as chegadas de gente fina. E, nesse momento, não havia gente muito mais final em Portugal do que Alves Barbosa.

No mesmo dia, num vespertino, podíamos ler: «O Sporting Clube de Portugal e o Sangalhos promovem amanhã, 1, pelas 21h45, no Estádio de Alvalade, uma homenagem ao ciclista Alves Barbosa, com um festival em que participam além dos melhores corredores portugueses, corredores espanhóis e os belgas Von Stenberfen e Severyns que deixaram a melhor impressão no festival de inauguração da pista do monumental estádio do Sporting».

Alves Barbosa, Alves Barbosa, Alves Barbosa. Alves Barbosa para cá e para lá. Talvez nunca o moço que nasceu em Fontela, Vila Verde, Figueira da Foz, a 24 de Dezembro de 1931, tenha alguma vez sonhado com tanta popularidade. Ou talvez sim. Afinal com o que é que sonham todos os garotos na altura em que a vida se lhes enche de sonhos?

Segunda-feira, dia 30 de Julho, abertura de um longo artigo no suplemento desportivo do Diário de Lisboa: «Alves Barbosa na Volta à França. Revelando classe e personalidade, o campeão de Portugal foi grande figura da prova. Brilhante 10º lugar por tempos e por pontos». Mais adiante especificava-se: «Ficou em 10º na classificação por tempos um corredor português integrado na equipa Luxemburgo-Mista. 

E importa notar que, na classificação por pontos, Alves Barbosa obteve igualmente o 10º lugar, pormenor que, confrontado com o anterior, define a regularidade de acção do campeoníssimo português. Foi esta a primeira vez que um corredor lusitano disputou a famosa prova. Partiu no meio de grande cepticismo, chegando-se a discordar publicamente do que se considerava uma “aventura”. Afinal, o ciclista do Sangalhos portou-se de maneira brilhante, não ficando diminuído ao afirmar-se que excedeu as expectativas. Podia esperar-se muito deste bravo bairradino. Não se esperaria tanto; tanto não esperariam os mais optimistas. Deu-se, até, uma curiosa evolução no público.

Da desconfiança passou, logo no primeiro dia (6º da classificação) à ideia de que seria óptimo Alves Barbosa terminar a corrida, dada a sua qualidade de estreante. Depois, começou a “exigir-se” que ficasse nos 15 primeiros. Mais tarde, o rapaz subiu ao 10º lugar e quando, numa etapa, desceu para o 12º, houve como que um momento de decepção. Por último chegou-se ao cúmulo de considerar que o 10º lugar é bom. Não é bom! É excelente!».

Pois, entre o optimismo desbragado e o pessimismo que ronda o bacoco, a ânsia portuguesa sobe e desce como os alcatruzes da nora. Lá longe, em França, Alves Barbosa estava longe dos estados de alma dos seus compatriotas, Cerrava os dentes e pedalava. Pedalava como nunca o fizera até aí. 

Primeiro português?

Foi já bem depois de 1956 que se levantou a questão e foi intensamente discutida. Alves Barbosa terá, ou não, sido o primeiro português a correr a Volta à França? Houve quem recordasse Custódio dos Reis, que participou em duas edições do Tour, as de 1949 e de 1950, chegando mesmo a vencer uma etapa, a 14ª da edição de 1950, entre Nîmes e Toulon.

Que Custódio dos Reis era filho de portugueses, algarvios, entretanto emigrados para Marrocos, disso não restavam dúvidas. Chegou a representar o Sporting, na época de 1946-47, ganhando quatro etapas da Volta a Portugal de 1946 e três na de 1947, tendo vencido também o Circuito de Torres Vedras em 1946.

Mas, decididamente, optara pela nacionalidade francesa, ele que nascera em Rabat, no dia 30 de Novembro de 1922, ao tempo em que Marrocos era um protectorado francês. Aliás, entrou na Volta a França com a camisola da equipa de Marrocos – também havia representações nacionais – e concluiria o resto da sua carreira em equipas francesas como a Peugeot, a Ruche e a Royal Codrix.

O bate-boca não durou muito e caiu rapidamente no poço do olvido. É hoje tido como seguro que a primeira verdadeira representação lusitana num Tour foi a de Alves Barbosa na edição de 1956, o mesmo ano em que venceu uma das suas três Voltas a Portugal (as outras foram em 1951 e 1958). Em 1951, com apenas 19 anos, o seu triunfo foi de tal forma pletórico que envergou a camisola amarela da primeira à última de todas as etapas!

Acrescente-se que Alves Barbosa regressou à Volta à França em 1957 (abandonou), 1958 (76º final) e 1960 (65º final), embora evidentemente sem o estrondo da sua entrada inicial, tendo também participado na Volta à Espanha de 1957 (17º final) , 1958 (16º final) e 1961 (venceu a 9ª etapa e obteve o 18º lugar final) e, já agora, na Volta a Marrocos de 1952 e 1960.

Chamava-se António da Silva Barbosa mas decidira, desde criança, quando se lançara nas primeiras provas velocipédicas, usar o nome do pai, também ciclista, Alves Barbosa, antigo empregado na Casa de Bicicletas Cardoso, em Lisboa, na Av. Saraiva de Carvalho, a Campo d’Ourique.

Foi como Alves Barbosa que surgiu descaradamente em Reims, no dia 5 de Julho de 1956, para competir no Tour fazendo parte da equipa Luxemburgo-Mista. O L’Équipe não lhe  poupou elogios, no final da etapa, em Liége: «Graças a um português e a um inglês, o Luxemburgo ganhou o prémio Martini (combatividade).Os mais brilhantes corredores da equipa luxemburguesa durante o primeiro dia da Volta à França foram os portugueses Alves Barbosa e o inglês Brian Robinson».

O facto de nenhum deles ser luxemburguês para o caso, pouco importava. O que importava era ganhar e Alves Barbosa tinha pinta de vencedor.

Louison Bobet era o grande ausente desse Tour. Zonzon, como lhe chamavam, nascido a 12 de Março de 1925 em Saint-Méen-le-Grand, na Bretanha, vencera as três últimas edições da Volta a França e deixava órfão o estatuto de grande favorito. Além dele, ainda a recuperar de uma intervenção cirúrgica, nenhum dos anteriores vencedores da competição se apresentou à partida pelo que a surpresa da vitória final de Roger Walkowiak, natural de Montluçon, no centro do país, não foi, por assim dizer, tão surpreendente quanto isso, ainda por cima a partir do momento em que se ficou a saber que Jacques Anquetil, a grande promessa do ciclismo internacional, também decidira não se apresentar à partida.Walko era um tipo estimado mas que não provocava sentimento de emoção.

Aos 29 anos conseguiu ser o mais velho vencedor de sempre da história do Tour, logo ele que nunca tinha ganho nada na vida. Com um toque de mágoa e de ironia, Jacques Goddet, o grande mestre do L’Équipe, escreveu sobre a chegada triunfante de Walkowiak ao fim da etapa derradeira: «Todos aqueles aplausos soaram como um lamento».

O imediato!

Quinta-feira, dia 5 de Julho de 1956. Peguemos num dos jornais do dia: «Começou esta manhã, às 10h30, a maior corrida de bicicletas do mundo – a Volta à França, a que concorrem 120 ciclistas de dez países. Entre a multidão que se juntou para ver partir os concorrentes estava Louison Bobet, o “ás” francês que venceu as três últimas Voltas. A ausência de Bobet e de outros “ases” que anteriormente dominavam as pistas fez com que os técnicos passassem a denominar esta corrida como “A Volta da Transição”. Bobet está numa situação económica bastante desafogada para poder assistir friamente à partida dos seus colegas sem se preocupar com o futuro: as suas três vitórias renderam-lhe cerca de oito mil contos».

O assunto era atualizado no dia 6: «Desde o início da etapa que uma luta violenta se travou entre cerca de vinte corredores que tentaram separar-se do grupo. Stan Ockers, campeão mundial belga, tentou destacar-se por várias vezes mas foi sempre apanhado. Dando o seu máximo, seis ciclistas levavam um avanço de 4m30s ao 50º quilómetro, de 4m45s aos 52 e mesmo 6m15s aos 72, quando atingiram Wave. Aqui, porém, outro grupo começou a diminuir a distância que os separava dos homens da frente, cujo ardor havia diminuído devido ao vento forte que não lhes soprava de feição».

Nem uma palavra sobre Alves Barbosa, para já. E, no entanto, ele seguia no grupo da dianteira.

Finalmente, no dia 8 de Julho, no fim do contra-relógio no Circuit de Rouen-les-Essarts, prólogo da 4ª etapa que terminaria em Caen: «Charly Gaul fez o melhor tempo – 22 minutos e 19 segundos à média de 40,530 quilómetros horários na primeira etapa de hoje contra-relógio em pista de 7 quilómetros e meio. Em segundo lugar classificou-se o belga Brankort, com 22 minutos e 46 segundos, e em terceiro o espanhol Bahamontes, com 22 minutos e 51 segundos. Desmet continua na posse da camisola amarela, tendo aumentado de 32 para 47 segundos o seu avanço para o segundo classificado, o francês Mahai. O português Alves Barbosa mantém o sexto lugar na classificação geral que não foi alterada até ao sétimo lugar. Na etapa contra-relógio classificou-se em 19º lugar com o tempo de 23 minutos e 5 segundos».

Finalmente começavam a levá-lo a sério. Em Portugal, o povo falava dele. O seu sexto lugar na etapa fez sensação num país pequenino que fitava o mar com saudades de grandeza e não estava habituado a proezas desportivas de monta. Dizia-se à boca cheia, nos cafés e nas conversetas de passeio, que Alves Barbosa tivera o terceiro lugar à mercê mas que uma queda maldita lhe tirara essa glória ainda maior.

Charly Gaul era seu companheiro de equipa. Mais ainda: seu chefe de equipa e seu padrinho. Fora Charly, que acabaria por vencer o Prémio da Montanha, a convencer o Tó, como alguns o conheciam, a correr a Volta a França. Nicolas Frantz, diretor da equipa do Luxemburgo, apresentou-se perante os jornalistas para anunciar oficialmente que o português passava a ter, dentro do grupo, a categoria de imediato, dando-lhe uma independência quase completa (a seguir a Gaul) e garantindo-lhe o apoio dos restantes companheiros.

Frantz revelou que a decisão fora tomada após o tal 19º lugar na etapa de contra-relógio, modalidade que Barbosa considerava ser o seu ponto mais fraco. Como era natural, não cabia em si de contente: «Desta vez, e apesar do grande esforço de ontem, não sinto qualquer cansaço, tal como havia acontecido nas primeiras duas etapas. É bom sinal. Acho que estou mais forte do que nunca! E como não tenho necessidade de estar sempre a beber água, perco menos tempo que os meus adversários».

Para lá dos Pirenéus, o grande aventureiro português poupava na água e ganhava tempo. Manteve-se firme na luta pelos lugares de topo até ao fim e acabou em décimo na geral, disputando nos Alpes uma célebre etapa com o espanhol Bahamontes que fez com que o Tour tivesse o seu Portugal-Espanha particular. No dia 28 de Julho, à chegada a Paris, no Estádio de Saint Claud, mais famoso por Parque dos Príncipes, Barbosa ainda foi capaz de um arranque no final dos 331 quilómetros iniciados em Montluçon e cortou a meta em oitavo. O imediato ficava à frente do capitão Charly. E perdia-se, outra vez anónimo, na multidão de franceses que saudavam os seus heróis…

Domingo, dia 29 de Julho: «Correspondendo ao votos de todos os seus compatriotas, o valoroso ciclista da Bairrada classificou-se em 10º lugar, o que representa, não é demais repetir, um dos maiores êxitos de sempre do desporto lusitano.

Para trás dele ficaram muitas “feras”, desde Darrigaade a Gaul e tantos outros homens de nomeada. Não há dúvida que Alves Barbosa foi digno embaixador do ciclismo e do desporto português, na esteira de José Bento Pessoa e de corredores que há dezenas de anos deram indicação de que ao nosso ciclismo só faltava contacto internacional para atingir a “maioridade”. O povo emocionou-se com as proezas do Tó como só o fizera, e faz, com um campeonato do mundo de hóquei em patins…».

O nome de Alves Barbosa ultrapassava as barreiras do esquecimento.