Whistleblowing e ‘café’ solúvel

De um dia para o outro, especialistas nestas coisas da proteção de denunciantes, daqueles que acham que dão uma vista de olhos na Lei em causa, e quando muito olham também para a Diretiva, e já estão aptos para perorar sobre a questão e para aconselhar e assistir as entidades obrigadas nos caminhos que a…

por Rui Patrício
Advogado

Entrou em vigor no passado mês de junho a Lei que transpôs a Diretiva europeia sobre proteção de denunciantes (vulgarmente whistleblowing, usando o termo inglês, como é habitual nesta e noutras coisas). E está em vigor, mesmo que a entidade que fiscaliza e sanciona (o MENAC, Mecanismo Nacional Anticorrupção) ainda não tenha saído propriamente do papel. Ora, estando em vigor, há um conjunto de comandos e obrigações que se aplicam (e não são poucos, nem são leves, e muito menos são destituídos de inúmeras consequências), e impendem sobre muitas (nalguns casos, todas) entidades públicas e privadas, sendo certo que, por exemplo, a obrigatoriedade de dispor de canais de denúncia (com certas características) se aplica a todas que tenham mais de 50 trabalhadores (com exceções muito pontuais). E tenho dúvidas (para dizer o mínimo) de que todos estejam conscientes da entrada em vigor da Lei em causa (que tem o número 93/2021), das entidades a que se aplica e em que termos, bem como dos inúmeros comandos e obrigações, nalguns pontos bem complexas, que dela resultam. E é bom que tenham essa consciência, rapidamente e em força, porque mesmo sem MENAC já está vigente e tem várias e fortes implicações. Mas não é esse exatamente o meu ponto, hoje e aqui. É outro – ou melhor, são dois outros.

O primeiro prende-se com os termos a que muitas vezes se tem reduzido a discussão ou o essencial dela, perguntando-se: «É a favor ou contra?». Ora, a meu ver a questão tem muito pouco interesse (a não ser para arranjar uma parangona que dura uns minutos ou para uma tentativa de colocação em bicos de pés), não só porque a Lei aí está (e antes dela estava a Diretiva), mas também porque nestas coisas (e em geral nas coisas do compliance – cumprimento normativo, como se diz na nossa legislação –, um conceito geral, poliédrico e complexo em que a proteção de denunciantes também se integra) não se trata de ser contra ou a favor, não se trata do ‘se’, trata-se, isso sim, de saber em que termos, ou seja, a questão é o ‘como’, já que o ‘se’, por várias e importantes razões (que agora não vêm ao caso), é inevitável e incontornável. Pelo que reduzir ou centrar as coisas no ser a favor ou contra nada traz de útil, sendo uma conversa do tipo café solúvel (sem ofensa ou menosprezo para o pó instantâneo), que parece café, quase sabe a café, mas que o não é realmente.

Segundo ponto, e este ainda mais calhado para a imagem do pó instantâneo: de repente, brotaram por aí, de um dia para o outro, especialistas nestas coisas da proteção de denunciantes, daqueles que acham que dão uma vista de olhos na Lei em causa, e quando muito olham também para a Diretiva, e já estão aptos para perorar sobre a questão e para aconselhar e assistir as entidades obrigadas nos caminhos que a Lei proíbe ou impõe. Nada mais errado, e mais perigoso. Dar uma vista de olhos na Lei (complementada ou não com a Diretiva) está longe de lançar luz suficiente sobre as coisas, não só porque a Lei é, ela mesma, complexa, exigindo conhecimentos e experiências vários, mas também porque é preciso relacioná-la, articulá-la e harmonizá-la (no que é possível, porque nalgumas matérias temo que não seja) com áreas tão diversas (e em si mesmas nada simples) como a área laboral, a área do compliance em geral, a área da proteção de dados, a área da governança, a área societária e, finalmente mas não menos importante, com as áreas penal e contraordenacional, e com os respetivos processos. E para já não falar em temas de tecnologia, entre outros.

Poderia dar exemplos suficientes para mais meia dúzia, pelo menos, de artigos de alguns milhares de carateres. Dou apenas dois, que me são caros, e que creio serem suscetíveis de ilustrar bem como as coisas são complexas e como exigem café a sério, e não pó solúvel: Como se articula a proteção de denunciantes com a proteção de testemunhas em processo penal? Como se harmoniza a investigação a fazer pelas entidades obrigadas no seguimento de denúncias internas e a eventual comunicação dos seus resultados às autoridades com os temas da responsabilidade penal das pessoas coletivas e com a não auto-incriminação? São apenas dois exemplos de um poliedro, figura geométrica com várias faces, e todas a carecer de harmonia e encaixe entre si. E para tentar responder é, pelo menos, necessário saber tirar uma bica.