Mais mortes com o calor: O que está a falhar? “Não basta a DGS dizer ‘bebam mais água’”

Na urgência do Hospital de S. João, os internamentos aumentaram 20% nos dias de mais calor da semana passada. O médico Nelson Pereira explica o impacto das temperaturas elevadas nos idosos mais vulneráveis e dependentes, o grupo mais atingido. Organismos mais frágeis em que o calor descompensa tudo resto. O esquecimento de beber água é…

A última quinta-feira, 14 de julho, pico da recente onda de calor, foi o dia com mais mortes em Portugal desde o início do ano. Os registos de certificados de óbito estão a ser consolidados, podendo não ser este ainda o balanço final, mas com mais de 450 mortes – 60% acima do esperado para esta época do ano –, fica na história como um dos dias de verão com mais mortes em Portugal, sem bater a grande onda de calor de junho 1981, que antes da pandemia tinha registado os dias com mais mortes em Portugal, mais de 600. Nos anos mais recentes, e noutras vagas de calor extremo, registaram-se a 5 de agosto de 2018 508 mortes e, a 8 de julho de 2013, 498, quando nesta altura do ano o esperado é que morram em Portugal 250 a 300 pessoas.

Nos últimos sete dias contam-se já mais de 700 mortes em excesso e o período de calor acima do normal vai prolongar-se com os termómetros a subir de novo, podendo vir a superar o excesso de mortalidade registado em 2003, mais de 2 mil mortes, no que foi a onda de calor mais prolongada no país e mais violenta na Europa, a ser batida pelo que se vive atualmente em França ou Londres (ver página 12).

Em Portugal e nestes últimos dias, como costuma ser habitual, a maioria das pessoas morreu nos hospitais, mas aumentaram também as mortes no domicílio, onde se incluem lares no caso de idosos institucionalizados, revela o Sistema Nacional de Vigilância de Mortalidade, com mais de 100 mortes diárias em casa no final da semana passada, o que só tinha acontecido uma vez desde o início do ano, mostram os dados analisados pelo i.

O que se vê nas urgências? O que provoca o calor e o que pode ser feito para prevenir melhor o impacto de condições meteorológicas extremas? Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Hospital de São João, traça um retrato ao i: só neste hospital central do Porto houve mais 50 doentes internados depois de uma ida às urgências do que na semana anterior, um aumento na casa dos 20% de internamentos. Os efeitos na saúde são os que estão descritos na literatura: o calor acelera o metabolismo, o que é prejudicial para várias doenças crónicas, de insuficiência cardíaca a problemas respiratórios, e compromete o estado de saúde de quem já tem condições frágeis.

Os internamentos deixam sequelas, também na perda de autonomia, o que não se mede na mortalidade. Para o médico, é preciso refletir sobre o que se passa a montante e “ajustar” o sistema de resposta do país a situações de maior risco, indo além dos alertas que são feitos à população. Da mesma forma que, em dias extremos, se acionam meios preventivamente para responder ao maior risco de incêndios, fazê-lo na saúde e nas respostas da Segurança Social.

 

Da desidratação a quedas

Começando pelas consequências do calor, Nelson Pereira diz que o grupo mais atingido são os doentes mais idosos, mais dependentes e com mais doença crónica. “O calor produz um aumento do metabolismo muito acentuado, quer do aparelho cardiovascular, quer respiratório, o que faz com que doentes que têm reservas fisiológicas muito baixas, mesmo sem estarem a ter atividade ou fazerem exercício, tenham um gasto energético maior quando não têm reservas para isso, o que os leva a descompensar”, explica.

Atrás vem o maior risco de infeções, nomeadamente urinárias, associado ao facto de beberem menos água e fazerem menos urina. “Os doentes com mais idade acabam muitas vezes por sofrer quedas, às vezes por baixa de tensão e desorientação. São uma série de fenómenos que depois se repercutem numa procura aumentada das urgências, de um grupo de pessoas que depois tem também mais dificuldade em ultrapassar estes episódios e as consequências desta descompensação, o que leva ao aumento da mortalidade, agravamento de doenças crónicas e perda de qualidade de vida”.

Para Nelson Pereira, na urgência não há dados que permitam perceber se, neste momento em particular, as pessoas já estavam mais descompensadas por menor acompanhamento nos últimos anos de pandemia, porque quando chegam à urgência vêm com um quadro agudo.

“A missão do serviço de urgência é muito ingrata nesse sentido porque vemos uma fotografia do doente no momento em que ele chega. Não sabemos se a descompensação é momentânea ou se resulta de um acompanhamento menos próximo. Quem pode ter melhor essa perceção são as consultas hospitalares e os cuidados primários, mas será difícil ter conclusões sem uma avaliação científica cuidada. É fácil fazer esse tipo de juízo, mas não é tão fácil demonstrá-lo. Agora o que podemos dizer é que claramente o fenómeno do calor prejudica obviamente mais quem já está menos bem.”

Quanto ao que poderia ser feito de diferente, sendo recorrente o aumento de mortalidade em vagas de calor, Nelson Pereira acredita que mais uma vez o problema não é conjuntural mas estrutural. “Sabemos que temos muitos idosos que vivem sós, em condições de habitação que nem sempre são as melhores, com casas muito quentes. Pessoas que muitas vezes não têm quem esteja com elas todos os dias e as ajude a lidar com situações de maior risco. Os idosos têm muito pouca sensibilidade para perceber que precisam de beber água mesmo sem ter sede”, exemplifica o médico. “Se as pessoas têm um nível de acompanhamento que, no dia a dia, está no limite, quando há uma qualquer descompensação esse acompanhamento torna-se insuficiente. Por exemplo pessoas que até têm alguém que lá vai a casa uma vez por dia, ajuda a fazer a higiene e deixa uma refeição que vão gerindo ao longo do dia: isto nestas alturas é claramente insuficiente porque precisam de mais acompanhamento, de ter água perto de si, de uma maior vigilância.”

Nelson Pereira salienta que mesmo em alguns lares a estrutura de apoio também é muito frágil, como ficou à vista na pandemia. “Em alguns momentos pode não haver sensibilização suficiente ou a deteção precoce de situações que, hidratando um bocadinho mais ou tratando rapidamente uma infeção urinária que aparece, podiam ter outro desfecho”, diz. “Certamente muitas coisas podiam ser atempadamente ultrapassadas e não são. Por isso digo que é mais estrutural do que conjuntural, porque temos muitas pessoas a viver com acompanhamento deficitário. Da mesma forma que um pequeno stress descompensa o organismo individual, também descompensa o sistema na forma como ele está organizado, pondo à vista as fragilidades do país e da nossa organização social”.

Para Nelson Pereira, era para isso que se devia olhar, podendo os números parecer mais ou menos elevados, mas numa altura em que a mortalidade este ano se aproxima da mortalidade no primeiro ano da pandemia. “A verdade é que temos uma população com muita idade, doença crónica e doença grave que está no limite da sua esperança de vida e vai soçobrando. Quando foi a covid-19, foi a covid-19. Quando é o calor, é o calor. Agora se vemos que há mais pessoas a morrer, se a esperança de vida baixa, podemos tentar fazer alguma coisa. A pandemia quando apareceu não podíamos prever, mas as flutuações da temperatura conseguimos antecipá-las e conseguimos mais ou menos perceber o que podemos fazer no apoio às pessoas mais vulneráveis, portanto temos a obrigação de ter uma estruturação social cada vez mais desenvolvida para que estas variações de fatores externos, que vão sempre existir por um motivo ou por outro, tenham o menor impacto possível e para que as pessoas vivam o máximo de anos possível com qualidade, sabendo que a vida não é infinita. O que choca um bocadinho é que o fim possa chegar em circunstâncias que com maior apoio, melhores condições de habitação e das estruturas residenciais para idosos, poderiam não ter um impacto tão grande.”

 

“Não basta a DGS dizer bebam mais água”

Se alertas públicos e “ensinar bem às pessoas o que devem fazer nestas alturas” são as soluções à mão em cima dos acontecimentos, para o médico é preciso melhorar no investimento a longo e médio prazo e ter planos de contingência bem definidos para estes momentos, que sejam mais concretos em quem faz o quê e como. “Uma pessoa que está sob a alçada da Segurança Social, um idoso de 80 anos que tem um apoio domiciliário uma vez por dia, se calhar nestas alturas tem de haver um plano que diga que em vez de ir uma vez vão duas ou vão três. Isto tem custos, tem impacto, mas também estamos a falar de períodos curtos e temos de ter capacidade para prever necessidades aumentadas e desencadear uma resposta adequada.”

Os tais meios preposicionados, como nos fogos. “Não temos tradição nenhuma em Portugal nisto, trabalhamos muito em cima do joelho:_“temos uma onda de calor, e agora?”. Podíamos ter planos escritos e definidos para o que cada entidade faz nestas circunstâncias”, diz Nelson Pereira. “Não basta a DGS dizer ‘bebam mais água’ ou não saiam nas horas mais quentes. Isso funciona para a pessoa que tem uma certa autonomia. Para as pessoas vulneráveis, sobretudo aquelas que já estão dependentes, que são quem acaba por perecer nestas alturas, não é suficiente. Internámos mais 50 doentes e isso é um grande impacto quando costumamos internar 40 doentes por ida. Não é um fenómeno português, não é rocket science. Se todos os anos acontece e se todos os anos a dimensão é a mesma, é porque estamos a falhar de alguma maneira a nível da família, do apoio domiciliar, das estruturas residenciais para idosos e dos cuidados.” E os mais novos de que sofrem nestes dias? “Temos algumas situações de desidratação e desarranjo intestinal, mas esse é outro problema estrutural, pois muitas vezes não precisavam de vir a um serviço de urgência”, conclui.