O fim de uma era em que o espaço foi o último local de conciliação

A Rússia anunciou a retirada da Estação Espacial Internacional a partir de 2024, 47 anos depois do primeiro aperto de mão entre um astronauta e um cosmonauta. Historiador de Harvard especialista na corrida aeroespacial lembra que a Rússia ganhou sempre mais com esta relação e deixa o seu palpite: é uma questão de afirmação de…

Há comentadores que admitem que pode ser bluff, enquanto outras análises se debruçam sobre o que vai ser da Estação Internacional Espacial (ISS, a sigla inglesa por que é conhecida). Com o anúncio da retirada dos cosmonautas a partir de 2024, parece fechar-se uma era em que o espaço foi local de conciliação entre duas potências que levaram as suas disputas além da atmosfera.

Por coincidência, uma notícia de julho, como foi há 47 anos a do histórico aperto de mão entre um astronauta americano e um cosmonauta soviético, que mostrava que, pelo menos ali, podia haver encontro e cooperação. Em plena Guerra Fria.

Foi no dia 17 de julho de 1975 que se esboçou, nesse aperto de mão, um futuro entendimento entre NASA e o programa espacial soviético, futura Roscosmos, abrindo-se caminho para uma união de esforços. Para trás ficava uma corrida mais que estratosférica, quer por serem os primeiros no lançamento de satélites (vence a União Soviética com o lançamento do Sputnik 1, em outubro de 1957); Depois, com o primeiro homem no espaço, honra do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, a 12 de abril de 1961. Nesse mesmo ano, John F. Kennedy promete a ida do homem à Lua, feito que já não veria em 1969 e que pôs a primeira bandeira americana na cronologia da história espacial.

Segue-se, em 1972, o início do apaziguamento, com a primeira missão conjunta do Projeto Apollo e do programa espacial soviético, onde pela primeira acoplaram, na órbita da Terra, sondas dos dois países – e onde os astronautas e cosmonautas se encontrariam em 1975. Na altura, já havia planos para colocar uma base permanentemente em órbita da Terra e os soviéticos voltariam a ser os primeiros com a Mir (1986), que lá estava no fim da União Soviética, ao ponto de se ter escrito já que o comosnauta Sergei Krikalev foi o último cidadão soviético, dez meses “esquecido” a bordo da estação espacial.

Ainda antes, tinham começado a desenvolver-se os planos para uma estação espacial americana, um projeto agarrado por Ronald Reagan em 1984, inicialmente pensada para ter o nome Freedom, com os EUA a unir esforços com Europa, Japão e Canadá. Viria a ser cancelada, com a administração Clinton a decidir que a NASA iria antes construir uma Estação Espacial Internacional, com os parceiros esperados mas a Rússia a bordo. 

Um fax ‘do nada’ “Uma carta enviada por fax por dois chefes do programa espacial russo apareceu mais ou menos do nada a sugerir a fusão da Mir-2 com a estação espacial Freedom”, recorda num artigo da Smithsonian Magazine o historiador John Logsdon, da Universidade George Washington, sobre como a política da guerra fria definiu a ISS. “A Casa Branca, depois de o debater por alguns meses, decide que é uma boa ideia convidar a Rússia para se juntar a esta estação.”

O anúncio é feito pelo vice-presidente Al Gore e pelo primeiro-ministro russo Viktor Chernomyrdin em 1993. O primeiro módulo, russo, Zarya, seria lançado em 1998, com a construção da ISS e junção dos diferentes módulos a durar 10 anos até ser possível a primeira expedição, numa missão que arrancou a 31 de outubro do ano 2000. Durou 137 dias, 16 horas e nove minutos e voltou a juntar astronautas e cosmonautas a 408 quilómetros da Terra: William Shepherd, Yuri Gidzenko e o veterano da Mir, Sergei Krikalev.

E agora? Até ao ano passado, tinham passado pela ISS 244 astronautas de 19 países, a maioria norte-americanos e russos. Atualmente na expedição 67º, a notícia da retirada russa não mereceu comentários na página da ISS no Twitter, nem dos astronautas a bordo. A equipa é liderada por um americano, Thomas Marshburn, e por um russo, Oleg Artemyev, que no Twitter, onde a NASA é muito ativa, não se pronunciaram sobre os desenvolvimentos em terra.

As publicações de ambos são mais antigas, com imagens de vistas do espaço. Em abril, no entanto, já tinha havido um incidente complicado de gerir: quando Oleg e os restantes dois cosmonautas russos se juntaram a bordo, vestiam um fato amarelo com adereços azuis. Foi visto como um apoio à Ucrânia, negado. A temperatura subiu quando, já depois do mal-estar russo, os três posaram com uma bandeira da autoproclamada República Popular de Luhansk e a NASA fez saber que não gostou.

Comentado e de alguma forma esperado, coube ao novo chefe da Roscosmos confirmar, esta terça-feira, os planos de Moscovo para abandonar definitivamente o projeto da Estação Espacial Internacional dentro de dois anos. “Vamos cumprir as obrigações para com os parceiros, mas a decisão de deixar a ISS após 2024 já foi tomada”, disse Yuri Borisov numa reunião com o presidente da Rússia russo, Vladimir Putin. O plano russo: voltar a ter uma estação orbital exclusiva. 

Com a estação espacial internacional programada para manter atividade técnica e científica até 2031 – além da preparação de astronautas recebe experiências científicas – a questão que surgiu, mais que simbólica, passou a ser muito prática: resistirá o projeto? Venderá a Rússia a sua parte? Como fica a distribuição de responsabilidades entre os parceiros, saindo a Rússia, a agência espacial do Canadá, CSA, a japonesa JAXA e a Agência Espacial Europeia?

John Logsdon, chamado a pronunciar-se pela imprensa especializada, admite que o assunto não esteja fechado por não estar escrito, o que tem sido a reação da NASA até aqui, mas parece mais firme, assente. E espera que haja planos de contingência com base nas ameaças que foi havendo nos últimos tempos: “Quer dizer, seria negligente se não tivessem feito nada”, comentou ao Space.com.

Em comunicado, o administrador da NASA disse, por outro lado, não ter existido ainda uma notificação oficial. Algo corroborado pela atual diretora da missão, Robyn Gatens. Questionada sobre o anúncio de que a Rússia pretende voltar a ter uma estação sua, mesmo com envolvimento privado, desvalorizou: “Penso que os russos, tal como nós, estão a pensar no que se seguirá para eles”. 

É que o atual acordo multilateral para a ISS termina em 2024, com planos para a sua extensão, vontade dos parceiros, ainda a ter de passar pelo congresso americano, que financia a maior fatia, mais de 3 mil milhões de dólares por ano. Em 2018, Donald Trump chegou a propor uma privatização, mas a administração Biden voltou a dar às oxigénio às ambições espaciais norte-americanas. Há uma semana, foi anunciada a data do voo inaugural do foguetão da missão Artemis 1, 29 de agosto. A NASA espera que o homem volte a pisar a Lua em 2025, na missão Artemis 3.

Do lado europeu, o sinal de corte de relações com os russos já estava dado: em março, menos de um mês depois da invasão da Ucrânia, a Agência Espacial Europeia suspendeu os planos para lançar um novo veículo para Marte em parceria com a Roscosmos. “Não pode acontecer devido às circunstâncias atuais, especialmente às sanções impostas pelos estados-membros”, disse o diretor-geral da ESA, Josef Aschbacher. “Tornam a missão impossível em termos práticos e em termos políticos”. Já este mês, este novo veículo da missão ExoMars, que se dedica à procura de sinais de vida, foi cancelado de vez. Quanto ao anúncio do chefe da Roscosmos, ontem ainda não havia comentários da ESA.

‘A rússia foi sempre quem mais ganhou com esta cooperação’ À procura de leituras, contactamos Matthew Hersch, professor de História da Ciência da Universidade de Harvard e especialista em tecnologia e na corrida aeroespacial desde a Guerra Fria, que fala de um momento estranho. 

“Desde o começo na década de 70 com o projeto de teste Apollo-Soyuz e depois na década de 90 e 2000 com voos internacionais para a Mir e ISS, os esforços ocidentais para envolver a União Soviética e a Rússia diplomaticamente no espaço resultaram sempre sobretudo em benefícios para a Rússia”, assinala Hersch ao i.

“Atrasado tecnologicamente e muitas vezes carente de financiamento, o programa espacial russo ganhou muito com a cooperação, razão pela qual a liderança da Rússia apoiou operações conjuntas mesmo durante o auge da Guerra Fria. Este último anúncio sobre o possível fim da participação russa na ISS é, portanto, intrigante”, resume.

Mas tem o seu palpite: “Os esforços conjuntos continuarão por enquanto e a declaração parece ter sido destinada para uma audiência de uma só pessoa: o presidente Russo Vladimir Putin, cuja necessidade de ser visto como o forte líder de uma nação poderosa pode tê-lo levado a tomar mais uma decisão impulsiva e disparatada”.