A pedra que matou Ottavio Bottechia

O povo adorava Bottechia, o primeiro italiano a vencer a Volta a França, mas os fascistas de Mussolini não lhe perdoavam a sua rebeldia perante o regime

Na véspera, Alfonso Piccin abusara um bocado da grappa. Era um indivíduo de hábitos matutinos e, geralmente, pelo nascer do sol já andava a espernear de um lado para o outro. Com o cérebro bastante esponjoso e a boca a saber a papel de música, ignorou enquanto pôde as punhadas que lhe desferiam na porta às cinco da manhã. Arrastou-se como foi capaz para deparar com o sorriso fresco e franco do seu amigo Ottavio Botechia que vinha, como era costume, desafiá-lo para pedalarem durante uns quilómetros para enrijecerem as pernas. A vivacidade de Ottavio, em contraste com a sua terrível cefaleia, fez com que Alfonso perdesse as estribeiras: «Dai! Stronzo! Mascalzone! Mi lacia stare. Ucciditi lontano da me!». Depois de ter atirado com a porta na cara do companheiro, voltou para vale-dos-lençóis curar a ressaca. Ottavio foi para a estrada sozinho. A bicicleta era a sua amante inseparável. Estava decidido a cumprir, pelo menos, sete horas de treino duro. Por volta da uma da tarde, uns camponeses encontraram-no inconsciente na berma da estrada, no preciso local onde o seu irmão havia sido atropelado e tinha morrido seis anos antes. Macabro.

Decorria o dia 3 de junho de 1927. Ottavio tinha uma impressionante fratura na base do crânio, um buraco profundo, e sangrava abundantemente. Uma das clavículas estava destruída e várias costelas quebradas. Os camponeses carregaram-no até à povoação mais próxima, Peónis, e entregaram-no ao padre local, um tipo com um nome supinamente sinistro, Dante Nigris, que tratou de lhe encomendar a alma ao criador. Só depois levaram o desgraçado ao hospital Gemona del Friuli onde ainda lutou durante doze dias com a Senhora da Gadanha até se deixar arrastar por ela para o mundo das trevas. Tinha 33 anos. Era famoso em toda a parte e a Itália em geral nutria por ele um carinho muito especial. Fora o primeiro italiano a ganhar a Volta a França, em 1924. E o segundo também, em 1925.

 

Abriu-se um inquérito oficial, como não podia deixar de ser. Uma investigação feitas às três pancadas e concluída à pressa em menos de 48 horas decidiu que Ottavio Bottechia tinha sofrido uma insolação grave enquanto pedalava a sua bicicleta, e que fora isso que provocara a sua queda e respetiva morte num valado. Não havia uma linha concreta sobre os ferimentos que lhe deixaram a cabeça numa papa. Ottavio foi enterrado com as devidas cerimónias e foram muitos os grandes ciclistas internacionais que fizeram questão de estar presentes. Mas a sua morte permanecia envolta em demasiadas dúvidas e o povo murmurava a cada esquina que Ottavio pagara a sua insolência de se rebelar contra o regime repressivo de Benito Mussolini, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Fundador do Império. De nada lhe valia ser um herói nacional se não utilizava esse estatuto para embelezar a imagem de superioridade dos herdeiros da velha Roma.

 

Giulio Crosti era um jornalista de mão-cheia e não ficou convencido com a posição oficial da polícia de investigação sobre a morte de Ottavio. Por isso, seguiu por ele próprio outro caminho de abordagem ao assunto. Cheteou gente aos pontapés, escarafunchou por debaixo de todos os calhaus que lhe vieram parar às mãos, e acabou por entrevistar uns milicianos que confessaram terem dado um pequeno aperto ao médico legista e ao chefe da polícia para que encerrasse rapidamente o inquérito com o veredicto de acidente. Descobriu igualmente que tinham recebido ordens de um dos comandantes mais próximos do Duce, um cavalo com arções chamado Gino Caserotti, para que, segundo palavras do próprio, «se pusesse um ponto final àquela palhaçada!»

 

Uns anos mais tarde, no seu leito de morte, o proprietário do terrenos onde encontraram o agonizante Ottavio, confessou publicamente: «Vi ao longe um homem que estava a comer as minhas uvas. Quando afastou as videiras para chegar aos cachos mais escondidos e as estragou, fiquei furioso. Atirei-lhe com uma pedra assustá-lo e, sem querer, acertei-lhe em cheio na nuca. Aproximei-me e percebi que se tratava de Bottechia. Entrei em pânico quando vi que estava mesmo mal e arrastei-o para a beira da estrada e deixei-o lá à espera que parecesse um acidente. Peço a Deus e a todos que me perdoem!» Em 1970, nova confissão, agora vinda de um homem que fora atacado à facada em Nova Iorque: «Fui contratado para matar Bottechia e cumpri o meu contrato!» Parece que o rapaz que todos amavam e se desfez em lágrimas convulsivas nos Alpes, no Tour de 1926, quando percebeu que não ia ganhar pela terceira vez consecutiva, incomodava muita gente. Mas não há quem responda à pergunta: quem? O seu choro ainda ecoa pelos vales…