China. Quando será possível o fim da “tolerância zero” à covid-19?

Para tal seria preciso reforçar o programa de imunização chinês, apontou o principal perito de Pequim, sendo que se teme que falte eficácia contra variantes às vacinas chinesas. Seja como for, há grandes dúvidas que Xi queira sequer reabrir para já.

Wuhan, ponto de partida da pandemia de covid-19 e símbolo máximo do sucesso do regime chinês contra o vírus, voltou a enfrentar um confinamento. Quase um milhão de residentes do distrito de Jiangxia tiveram que pôr a vida em pausa, após serem detetados quatro casos assintomáticos. Aumentando a perceção de que a política de Pequim, que exige “tolerância zero” quanto à covid-19, não pode durar para sempre. Mas é possível levantar restrições deste país gigante, com uns 1,4 mil milhões de habitantes, a vasta maioria dos quais nunca foi infetado pelo vírus, sem um surto brutal, com impactos ainda mais profundos que a continuação da política de tolerância zero? E – talvez ainda mais importante – o líder chinês, Xi Jinping terá sequer vontade disso?

Por agora, não há grandes projeções quanto ao impacto do levantamento de restrições na China, ou sequer planos para tal – provavelmente porque o regime mantém os seus cientistas a rédea-curta. Aliás, uma das poucas propostas sobre como desconfinar a China, produzida por Zhong Nanshan, o principal perito da China quanto à covid-19, e o seu colega Wei-Jie Guan, rapidamente foi apagada da imprensa estatal, avançou o South China Morning Post, em abril, logo após o plano ser divulgado como editorial da National Science Review. 

Nanshan – que foi dos principais conselheiros científicos do regime chinês na elaboração da sua resposta à pandemia, chegando a ser considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela Forbes em 2020 – naturalmente não defendeu uma ”rápida e total abertura da China continental”, frisando que as variantes da covid-19 mantêm “um risco de mortalidade consideravelmente superior à influenza sazonal”, vulgo gripe, e que tal resultaria em “instabilidade social”. E não há nada que o Partido Comunista da China aprecie menos do que instabilidade social. 

No entanto, “a China precisa de reabrir para normalizar o seu desenvolvimento socio-económico e adaptar-se à reabertura global”, admitiu o cientista, apontando os requisitos cruciais para a China regressar à normalidade. O mais importante dos quais, a taxa de vacinação, continua a falhar, sobretudo num dos setores mais frágeis da população, os idosos com mais de 80 anos. 

Mais de um quarto dos chineses com esta idade, estando em elevado risco de morte ou doença grave, continuam por vacinar, e uns 60% não receberam reforço. Se contarmos com a população com mais de 60 anos, ainda há cerca de 27 milhões de idosos chineses por vacinar.

eficácia reduzida contra variantes Paradoxalmente, o sucesso da política de “tolerância zero” chinesa é uma das causas da hesitação, avançou o Wall Street Journal, esta semana. “Um dos maiores razões para que os adultos mais velhos na China continental estejam relutantes em ser vacinados seria a percepção de baixo risco de contrair covid-19”, explicou Ben Cowling, professor de Epidemiologia na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Hong Kong.

Não ajuda que, enquanto boa parte do resto do mundo já conta com alguma imunidade de grupo providenciada pela infeção, se pense que as vacinas chinesas – produzidas pela Sinovac ou Sinopharma, que utilizam o método mais tradicional de inocular o patogéneo desativado, de maneira a estimular o sistema imunitário a combatê-lo – tenham uma eficácia muito reduzida contra variantes como a Omicron. Não só seria preciso um reforço, como estudos do Research Translational Institute indicam que esse reforço deveria ser de vacinas de mRNA, um outro método, utilizado pela vacina da Moderna e da Pfizer, que implica enganar as nossas próprias células a gerar proteínas do vírus, para que o nosso sistema imunitário o combata. O problema é que a China proíbiu a entrada de vacinas estrangeiras e ainda não desenvolveu a sua própria vacina de mRNA. 

Outros requisitos apontados por Zhong Nanshan, para uma abertura da China que não seja catastrófica, parecem prestes a ser cumpridos. Como o reforço da utilização de testes antigénio – o método usado nos testes rápidos, diminuindo o tempo de resposta e a necessidade de infraestrutura de análises – em vez dos PCR. Desde então, em muitas cidades chinesas, até se tornou regra os habitantes terem de fazer um teste rápido todos os dias, enviando-o às autoridades para manter verde o seu QR Code, que têm de passar por um scanner antes de entrar em praticamente todos os estabelecimentos comerciais e espaços públicos.

Outro requisito crucial seria um reforço das terapêuticas, de maneira a reduzir o aumento da mortalidade que quase inevitavelmente viria com a reabertura, frisou o epidemiologista. Sendo que ainda esta segunda-feira foi aprovado o primeiro comprimido antiviral contra a covid-19 da China, o Azvudine. Este medicamento produzido pela Genuine Biotech, sediada em Henan, costumava ser usado para tratar o HIV, mas mostrou eficácia em acelerar a recuperação da covid-19, competindo com o Paxlovid, produzido pela Pfizer.

Viver na incerteza No entanto, não são necessariamente as condições epidemiológicas que decidem se a China abandona a sua abordagem de “tolerância zero” à covid-19 ou não. A decisão está nas mãos do regime de Xi Jinping, cujos objetivos políticos, de certa forma, foram facilitados pela pandemia, apesar da crise económica que esta causou, apontam analistas. Há muito que Xi procurava consolidar o seu poder interno, algo que conseguiu com as restrições, bem como seguir uma orientação económica mais proteccionista. E, como tal, o regime não tem grande pressa em reatar laços com o mundo exterior, onde se alastra a covid-19. 

“A decisão da China de se virar mais para dentro precedeu a pandemia, mas foi intensificada por esta”, explicou Jean Pierre Cabestan, professor de ciências políticas na Universidade Baptista de Hong Kong, ao Atlantic. É que, com a pandemia, Pequim conseguiu “reduzir a dependência da China do exterior e aumentar a sua autosuficiência económica e tecnológica”, frisou. Não espanta que, o mês passado, um alto dirigente do regime tenha chegado a falar numa política de “tolerância zero” à covid-19 que dure os próximos cinco anos.

Pelo meio, os chineses terão de se habituar a viver na incerteza. Num momento podem viver a liberdade que se viu em Wuhan em agosto de 2020, quando imagens de uma festa gigantesca numa piscina deixaram boa parte do mundo cheio de inveja. Mas, subitamente, podem dar com os transportes públicos parados, como está a acontecer agora no distrito de Jiangxia, enquanto fecham restaurantes, bares, mercados e cinemas, ficando os habitantes de áreas de maior risco proibidos de sair de casa.