Ricardo Baptista Leite: “É quando a atenção mediática baixa que aumentam as atrocidades”

Ricardo Baptista Leite está em Lviv há duas semanas e diz que na bagagem virão sobretudo histórias de esperança. Mas também a lição do serviço de saúde ucraniano, que no meio da guerra continua a acreditar que é possível reformar os cuidados, com os profissionais de saúde no ‘barco’. Tem relatado a viagem nas redes…

Estava preparado para o que encontrou em Lviv?

Em teoria estamos sempre preparados para encontrar aquilo que lemos e de que vamos falando mas a realidade supera o que imaginamos. Apesar de os profissionais e a população tentarem manter alguma normalidade, dizem que a vida mudou por completo e vemos isso. Lviv, apesar de tudo, é das cidades consideradas mais seguras na Ucrânia, mas também por força disso acaba por ser uma cidade para onde muitos deslocados internos fogem.

Muito afetada também por esse aumento de população?

Sim, agora baixou um bocadinho, mas mesmo assim há cerca de meio milhão de refugiados ou deslocados internos a viver na cidade. Numa cidade que tinha cerca de 1 milhão de habitantes de base é muito significativo. E só isso tem impacto no sistema de saúde, mesmo nas coisas mais comuns, na procura de cuidados de urgência, cirurgias e medicamentos.

Há muitas ruturas de material?

Há dificuldades. É preciso ter presente que é um país onde já havia dificuldades, não é um país rico. E há outra questão, que de algum modo se verifica sempre quando há uma guerra que se foca num determinado território, sobretudo em países de maior dimensão, como é agora junto à fronteira com a Rússia. Há uma grande deslocação de pessoas internamente para a parte do país dita mais segura, mas o apoio humanitário acaba por ir mais para a frente de guerra. Aqui em Lviv não encontro estrangeiros, não encontro pessoas que não sejam ucranianas. Muito raramente encontro um ou outro, que são quase sempre jornalistas.

Se pode haver a ideia de que estão imensos voluntários na Ucrânia, não foi isso encontrou.

Sim. Claro que tenho relatos da frente de guerra onde estão os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha Internacional, os International Medical Corps, entre outros, a dar contributos gigantescos. Mas nas zonas de retaguarda isso já não é assim. Essas organizações têm de trabalhar por prioridades e, portanto, claramente esta é uma parte que fica para trás. São os cidadãos de Lviv, incluindo médicos, enfermeiros, profissionais de saúde, que são voluntários na própria cidade. Para além de trabalharem – e os profissionais de saúde estão absolutamente esgotados depois de dois anos de pandemia e cinco meses de guerra  –  vão para a estação de comboios ou para outros serviços de voluntariado. E, por isso, quando a Associação dos Ucranianos em Portugal me desafiou com o convite do Governo Regional do Lviv para vir cá servir como voluntário, mas também para dar voz à campanha de angariação de donativos para a maternidade e os cuidados intensivos neonatais do Hospital Regional de Lviv, não podia dizer que não. Vim e montámos a campanha de angariação de fundos, que está disponível online em ucraniaportugal.pt.

O objetivo é chegarem aos 170 mil euros.

Sim e a campanha vai continuar nas próximas semanas. No Hospital Regional de Lviv tinham começado a construir uma nova maternidade. É um hospital com cerca de 3 mil partos por ano. A construção ficou a meio, com o desvio dos fundos para o esforço de guerra. Portanto é um investimento que está parcialmente feito, mas indisponível à população. Com esta verba, queremos instalar o sistema de oxigénio, o sistema de ventilação da maternidade. Outro objetivo era adquirir um gerador de grande dimensão e com esta campanha já conseguirmos que a organização das Nações Unidas oferecesse o gerador tão necessário ao funcionamento da maternidade, que neste momento só tem geradores mais pequenos e vive preocupada com falhas de energia. É um investimento de 67 mil euros, mas continuam a precisar de verbas para o resto. Até esta sexta-feira tinha havido 134 donativos individuais no valor de 6350 euros. É uma angariação de fundos para que possamos ajudar estes bebés a nascerem saudáveis. É este o espírito que reina na maternidade, permitir que estes bebés possam ajudar a reconstruir uma Ucrânia livre.

Estima-se que tenham nascido mais de 60 mil bebés na Ucrânia desde o início da guerra. Cada bebé que nasce é mais um grãozinho de esperança?

É isso. E nota-se essa esperança quer nos pais, quer nos profissionais de saúde. Estar na zona dos cuidados intensivos neonatais foi das coisas que mais me impressionou. Estão desde março a trabalhar num subterrâneo, permanentemente debaixo de terra. Filmei a entrada nas escadas quando cheguei, um autêntico bunker. Antes da guerra eram umas caves do hospital que serviam de armazém e que nem era utilizadas e no espaço de poucas semanas conseguiram converter o espaço, com toda a instalação de oxigénio e por aí fora. As janelas estão tapadas com sacos de areia e trabalham ali sem luz natural. Têm uns sistemas de ventilação mas é um calor imenso e por isso é um ambiente muito pesado, onde estão muitos bebés. Estão em capacidade máxima neste momento.

Têm quantas crianças?

Os cuidados intensivos têm cerca de 12 a 14 incubadoras e depois ainda têm uma unidade de pós-intensivos neste bunker, com cerca de 30 berços, todos ocupados. Se houvesse necessidade imediata de mais cuidados, teriam que procurar alternativas.

São bebés de famílias daí ou de deslocados?

É quase 50/50. Um dos fenómenos preocupantes é que sobretudo as mães que vêm de Leste tem estado nestes últimos cinco meses numa situação de absoluta instabilidade, com um acompanhamento pré-natal longe do desejável. As equipas médicas suspeitam que tudo isto possa estar a condicionar também maior prematuridade nos nascimentos quando não existe uma infraestrutura para isso. Os serviços de saúde mental também estão assoberbados. Tenho estado com vários psicólogos clínicos e o telefone deles não para, não só com doentes de Lviv mas a maioria está a ajudar no acompanhamento de soldados na frente de guerra. E por outro lado chegam também muitos feridos de guerra.

Um sistema de saúde sob pressão.

E a ter de adaptar-se. O hospital onde eu estou a servir faz lembrar um pouco o São José ou o Curry Cabral em Lisboa. O hospital para onde estão a ser levados os feridos tem um bunker com cerca de 100 camas. É um hospital de grande dimensão, parece o Santa Maria, e teve de converter 50% da sua capacidade para serviços de trauma e de reabilitação física porque havia uma necessidade a nível nacional de encontrar uma unidade que pudesse dar resposta aos mutilados de guerra, sejam civis, sejam militares, que vêm da parte oriental a precisar de cuidados. Este hospital também precisa de intervenções. Agora que a Ucrânia é um país candidato à União Europeia, vão tentar candidatar-se a fundos europeus para se poderem transformar num centro nacional de reabilitação física, que é algo em que também queremos apoiar. Neste momento existe um claro entendimento de que estas vão ser necessidades que vão muito para além da guerra e que o país vai ter longos anos de recuperação. A reabilitação é uma área onde não estavam minimamente preparados.

Sente-se esse choque com a realidade mesmo num país que tinha uma história de conflito e resiliência?

Sim. Lviv é a capital cultural da Ucrânia e as pessoas tentam manter alguma normalidade. Há músicos de rua. Os restaurantes estão cheios, só com pessoas de cá, ucranianos, mas cheios. Há muitos jovens na rua. A Ópera, que é um ex-líbris da cidade, reiniciou esta semana a temporada.

Foi?

Visitei o edifício mas não assisti a nenhum espetáculo. Mas ao mesmo tempo que se vê esta tentativa de manter alguma normalidade, há uma lembrança constante de existe um conflito armado no país. Fui com colegas médicos assistir a um funeral de um deputado regional de 35 anos, que faleceu na frente de guerra onde estava como voluntário do exército. Era de Lviv e por isso o corpo foi trazido para cá. Estavam lá os dois filhos pequenos, que ficaram para trás. A cerimónia foi na igreja militar, que é uma igreja católica grega, com um ritual um bocadinho diferente do católico romano, cantado, com muita gente do exército presente, banda militar, centenas de pessoas na rua e na igreja. Só em dois dias aquele tinha sido o quinto funeral de um filho da cidade de Lviv que tinha morrido na frente de guerra quando esta era uma igreja militar que raramente tinha funerais. Em 2014 também viveram muito isto, não na dimensão de agora, mas viveram. Estamos a falar de uma igreja no coração da cidade onde diariamente chegam corpos. Diariamente as pessoas são recordadas da morte.

Toda a gente conhece alguém.

Sim. Inevitavelmente toda a gente conhece alguém que está na guerra ou que já morreu ou que se viu forçado a fugir. Quando vim de comboio de Cracóvia, parei numa cidade fronteiriça e fui visitar a Casa da Ucrânia, que era uma espécie de centro cultural naquela cidade onde se promovia a cultura ucraniana na Polónia e está agora convertida num centro de acolhimento de refugiados. E de facto o drama que se vive, sobretudo mães com crianças sozinhas a fugirem da guerra, é brutal. Quando saí do comboio nessa cidade fiquei quase uma hora com voluntários a ajudar mulheres a carregar carrinhos de bebé porque não há escadas rolantes e elevadores e elas têm os carrinhos, as malas e estão sozinhas com as crianças. E os voluntários o que diziam era que as coisas agora estão muito melhores: há quatro ou cinco meses não eram dezenas de pessoas como eu vi mas milhares. 

Era nesse sentido que lhe perguntava se estava preparado. Nunca houve uma guerra reportada quase em tempo real, a certa altura parece que toda a gente domina a configuração do país, mas estar aí é diferente.

Sim. Mesmo não estando na frente da guerra, é uma experiência muito diferente e poder estar aqui durante um período prolongado, diariamente a conviver com a população de manhã à noite, a trabalhar com eles, permite-me ter um conhecimento um bocadinho diferente daquilo que é o sentimento nacional e das dificuldades que vivem. Tenho encontrado profissionais de saúde de elevadíssima qualidade, com uma formação extraordinária, a trabalharem com meios muito limitados. Mas não cedem, não baixam os braços. Há momentos em que uma pessoa fica verdadeiramente impressionada e emocionada, mas à volta estão todos tão focados no trabalho e em cumprir a missão que somos imbuídos do mesmo espírito, o que no final do dia nos dá algum otimismo e esperança. Não conheci até hoje nenhum ucraniano que sequer pusesse outra hipótese que não fosse a vitória absoluta e total da Ucrânia nesta guerra. A única coisa que gostariam era que o Ocidente ajudasse mais com armas para acelerar o fim da guerra, para que a Ucrânia se pudesse afirmar de uma vez por todas livre. 

Passam cinco meses desde o início da guerra, a atenção mediática é menor. As pessoas aí sentem esse instalar progressivo de um certo esquecimento ou banalização da guerra?

Absolutamente. Aliás, eu estou absolutamente convicto, depois de tantas conversas que já tive, que o regime de Putin está a apostar tudo na lógica da fadiga da guerra. A fadiga da guerra do Ocidente, o Ocidente preocupar-se cada vez menos com a guerra, seja mediaticamente, seja socialmente. No início, os políticos e as empresas, a sociedade em geral, estavam muito preocupados. É um tema cada vez mais ausente do dia a dia e há aqui algum receio de uma transformação da Ucrânia numa espécie de guerra do Vietname, que se prolongue durante anos, embora com a convicção popular de que terminará na próxima primavera. 

E que ainda haverá um longo inverno pela frente?

Um inverno difícil. E além da fadiga da guerra fora da Ucrânia, há também essa fadiga cá. Desde que estou em Lviv tocaram as sirenes três vezes. São sirenes que avisam que há um míssil a vir nesta direção. Aquilo que me dizem é que muitos civis têm morrido com estes ataques porque as pessoas deixam de ligar às sirenes. Tocam as sirenes e não vão para os abrigos, não se protegem. 

A fadiga que já tínhamos visto com a pandemia.

As pessoas estão fartas da guerra. Estão todos fartos do conflito, de viverem com um recolher obrigatório das 11 da noite às 7 da manhã, e este cansaço, seja aqui, seja fora, é de alto risco. Sabemos de outros conflitos que é precisamente quando baixa a atenção mediática, sobretudo a atenção mediática internacional, que aumentam as atrocidades e as violações dos direitos humanos. E por isso é tão importante o jornalismo manter uma presença forte neste contexto de guerra e, por isso também, quando me desafiaram a vir para o país, num momento em que há claramente um declínio do interesse mediático, senti que também por aí, e com esta campanha de angariação de fundos, seria uma forma de tentar, pelo menos em parte, ajudar a manter o foco. Quando fizemos esta campanha de angariação de donativos foi na lógica de que sim, estamos a apoiar o povo ucraniano e esta maternidade, mas a contribuir para o reconhecimento de que os ucranianos estão a lutar uma guerra por todos nós, por todos nós europeus em particular. A  guerra da Ucrânia é uma guerra da Europa, é uma luta pela liberdade na Europa. E nesse sentido, como dizia Churchill noutro contexto, nunca tantos deveram tanto a tão poucos. Neste caso, os europeus devem muito ao povo ucraniano por serem tão corajosos e assumirem esta guerra contra um colosso militar que é a Federação Russa. Não sou soldado, e portanto não iria para a frente da guerra, mas como médico, é um apoio quase simbólico mas que procura chamar a atenção para que todos possam contribuir de alguma forma. 

É médico, fez a especialidade em infecciologia, mas ao fim de sete anos de medicina a tempo inteiro acabou por optar pela vida política. Já tinha voltado a vestir a bata na pandemia. Sente o bichinho a voltar? 

Quando fui eleito para o Parlamento pela primeira vez senti que seria muito difícil manter uma atividade clínica com a qualidade que entendia ser necessário e por isso na altura fiz a transição para a Academia. Quer na Católica, quer na Faculdade de Ciências Médicas da Nova, tenho mantido a minha atividade académica ligada às ciências da saúde. É muito difícil, sobretudo na área de infecciologia, uma pessoa conseguir manter o nível de atualização necessário para prestarmos bons cuidados tendo outra atividade. Mas foram sete anos a somar a toda a formação anterior de atividade clínica e acho que qualquer profissional de saúde, depois de viver anos a trabalhar no meio, sente que o ser-se médico, ser-se profissional de saúde é mais do que uma profissão, é uma forma de estar na vida. Houve um professor que nos disse isso logo na primeira aula de Anatomia no meu primeiro ano de faculdade de Medicina e a vida tem-me demonstrado isso mesmo. Ou seja, é nos incutido este espírito de missão e, perante a necessidade, não podemos virar as costas. É mais do que um juramento, é uma forma de estar. Portanto, tornou-me para mim um imperativo quase moral poder contribuir de alguma forma no terreno, que foi o que senti durante a pandemia perante os colegas que estavam a passar por momentos tão difíceis. Durante o ano e meio que estive ao fim de semana com os colegas no hospital, mais uma vez foi um apoio mínimo, mas o que fui vendo era que mesmo apoios mais simbólicos em situações de maior aperto são importantes até em termos de motivação dos colegas. A mim, pessoalmente, enriqueceu-me sempre mais do que o que dei os outros. Estar no terreno mantém-nos muito ligados à realidade e permite-nos ter alguma humildade perante a dimensão das dificuldades e dos desafios que doentes e profissionais de saúde enfrentam nestes momentos de crise, seja no contexto pandémico, seja agora no exercício da profissão médica num país em conflito armado.  

Pelo meio foi candidato à Câmara de Sintra, num registo muito mais combativo. A oratória política, digamos assim, pode ser um pouco espalhafatosa. Estas experiências devolvem ao essencial? Penso por exemplo quando há poucos meses quase pedia um duelo de espadas a Basílio Horta.

É verdade e depois ainda fui cabeça de lista por Lisboa nas legislativas. Foram dois combates políticos muito difíceis. É inevitável muitas vezes esse combate também retórico. Mas no caso de Sintra em particular tinha saído diretamente do hospital para essa campanha e acho que a intensidade deveu-se muito a isso, ao sentido de urgência de que temos de fazer alguma coisa e não podemos ficar de braços cruzados. Em Sintra, na altura, eram quase 100 mil pessoas sem médico de família. Infelizmente, o número hoje já ultrapassa os 120.000. Defendia uma visão para um caminho diferente para o concelho e é evidente que, quem vem do terreno, quem vive estas experiências, acaba por se tornar emocional. Isso traduz-se num combate político, porque uma coisa é falarmos na teoria, outra coisa é estarmos no terreno ao lado dos colegas e pedirem-nos para dar voz ao que não conseguem transmitir. Acho é uma vantagem um político manter-se ligado. É preferível a quem sabe de tudo e fala de tudo e vive numa realidade paralela àquela em que vive a população. Há cada vez mais uma exigência maior em relação aos nossos representantes políticos e é nesse sentido que digo que estas experiências são enriquecedoras, no meu caso  também para o meu serviço público como deputado.

Estamos a conversar por Zoom, com falhas na internet, mas parecem da minha parte.

Aqui a  internet é muito boa, sobretudo para os serviços públicos. O Elon Musk ofereceu o sistema Starlink, internet por satélite, ao Governo ucraniano, o que tem sido um instrumento vital para o funcionamento das instituições e não só. As pessoas comunicam muito. Há duas coisas que me pediram para instalar no meu telemóvel mal cheguei, uma foi o Telegram, onde se partilham a maioria das notícias, e outra uma app que toca quando as sirenes disparam e que diz quando é que é seguro voltarmos à nossa vida.

Já fez alguma coisa o Elon Musk nos últimos tempos.

[risos] Os milionários não são só culpados do mal. 

Cá o verão na saúde tem sido particularmente difícil. Visto daí, muda alguma coisa na perspetiva?

Reforça a convicção de que em Portugal, com o nível de investimento que tem na saúde em termos monetários, tem a obrigação de fazer melhor. Com os meios que nós neste momento investimos no SNS, percebe-se que há um problema grave de gestão, de organização, de planeamento. A fuga de profissionais do SNS  é real, é inegável. Ainda agora, este último concurso, mesmo com promessas de vencimentos reforçados, ficou com quase metade das vagas por preencher porque as pessoas não acreditam e, portanto, é preciso que na liderança do SNS a nível ministerial, a nível do Governo, passe a haver uma visão clara de para onde é que se está a ir. Quando as pessoas não veem para onde estamos a ir, quando não há uma estratégia, quando não há um modelo de gestão na qual as pessoas acreditem, não há dinheiro que nos valha. Esse é o problema mais grave neste momento do SNS, a falta de visão estratégica. E como me perguntava, visto de fora, uma coisa que vejo aqui é que curiosamente, antes da guerra, o Ministério da Saúde estava a tentar implementar um conjunto de reformas e todos profissionais, apesar das dificuldades que são inegáveis e dos vencimentos que são extremamente baixos, sentem-se parte dessa reforma. 

Não é um esforço só da guerra?

Mesmo em contexto de conflito, continuam a senti-lo e apesar das circunstâncias estão a tentar continuar o caminho da reforma do sistema de saúde local. O que só demonstra que, para uma reforma funcionar num serviço público como é o caso do Serviço Nacional de Saúde, é preciso que os profissionais sejam parte da solução. É preciso que façam parte, que acreditem. Acho que foi destrutivo, senão mesmo fatal para a relação com o Governo, a ministra da Saúde ter-se recusado a reunir com os profissionais de saúde durante os dois anos da pandemia. Não conheço nenhum país do mundo onde o ministro da Saúde não tenha reunido com os profissionais, com os sindicatos, com as ordens profissionais, mesmo que tivessem divergências de opinião. E, portanto, como é que se pode implementar uma reforma contra aqueles que vão implementar essa reforma ou não os envolvendo? Aqui, apesar das circunstâncias, das dificuldades, é possível, por força dessa motivação, acreditar numa reforma. Creio que esta é uma mensagem que deve servir de lição e esperemos que as nossas autoridades compreendam que têm de envolver os profissionais e dar-lhes esperança através de medidas concretas para que todos possam acreditar. Para acreditarem têm de ser envolvidos neste processo, que é algo que até hoje infelizmente não tem acontecido. 

Já viu alguma ideia interessante que fizesse sentido implementar cá?  

Uma das coisas que achei interessante foi que, para além do financiamento estatal dos hospitais, existem uma espécie de programas de incentivos em que as administrações hospitalares possibilitam aos profissionais desenvolver projetos que consideram importantes. As equipas propõem ideias, criam campanhas de angariação de donativos para a realização desses projetos e avançam.

Seria uma espécie de orçamento participativo na Saúde?

Algo do género. Independentemente depois da fonte de financiamento, que imagino que possa ser algo controverso, este princípio de estimular uma espécie de concurso de ideias de baixo para cima, criar condições para que as ideias se transformem em projetos concretos e se possam montar estruturas de financiamento, é muito diferente daquilo que acontece muitas vezes em Portugal, que é de cima para baixo.

O projeto piloto, que mais tarde se replica ou não.

Sim e que tem de ser igual em todo o lado e depois não funciona. Essa capacidade de inovação com base na experiência no terreno é algo que já se vê noutros países que vai funcionando mas aqui na Ucrânia, como sempre fruto da necessidade, é algo que é valorizado pelas equipas. E que reforça a ideia da importância do empoderamento, como dizem os brasileiros, dos profissionais e da voz dos doentes no desenho de soluções. Aqui resulta da necessidade, no nosso caso poderia ser usado como uma vantagem para evoluirmos.

Muitas vezes ouve-se ‘na Ucrânia não há covid’.

Infelizmente há, agora o que têm é uma população muito mais jovem do que a nossa, o que em termos de impacto faz toda a diferença. Tem havido uma boa campanha de vacinação, pelo menos aqui na zona de Lviv. Estamos no verão, embora nesta última semana esteja a haver um aumento de casos. A mortalidade é significativamente mais baixa por ser uma população mais jovem e terem apostado na vacinação, mas há alguma preocupação em relação ao inverno, sobretudo por causa dos deslocados internos e de toda a sobrecarga do sistema de saúde. É tudo a somar. Agora é como tudo: num país em guerra, há naturalmente outras prioridades e o que vivem aqui é uma luta pela sobrevivência.

Criaram a especialidade de medicina de urgência, percebeu-se que era uma necessidade. Cá vê o mesmo caminho a ser feito como pedem alguns médicos? 

Sim, embora ainda não se sinta muito na prática. Os serviços de urgência continuam a funcionar com equipas rotativas, vindas particularmente da medicina interna, mas sim, avançaram na criação da especialidade e acho que em Portugal é uma discussão que vamos ter que acabar por concretizar. 

Que histórias vai trazer consigo?

Histórias de doentes que contam experiências pessoais, sobretudo os deslocados, mulheres que têm maridos na frente de guerra. Há uma senhora que conheci, cozinheira num centro de acolhimento de refugiados e que tem também um infantário na cidade fronteiriça da Polónia [Rzeszów]. A Polónia, neste momento, começa a obrigar a que os refugiados tenham que ter emprego. Senão, volvidos três meses, têm que voltar para a Ucrânia e está-se a verificar esse fenómeno, muita gente a ter de ir embora mesmo querendo ficar na União Europeia. Uma das razões para não conseguirem emprego é porque a maioria dos refugiados são mulheres sem marido. Não conseguem neste período arranjar emprego e tomar conta dos filhos. Neste centro de refugiados, o infantário serve precisamente para tentar resolver isto e foi lá que conheci esta senhora, que no meio de todo o trabalho que está a ter, decidiu adotar uma criança. O pai morreu na frente de guerra e a mãe, que tinha levado aquela criança para o centro de refugiados, morreu com cancro. Tinha iniciado quimioterapia na Ucrânia e acabou por morrer na Polónia. Aquela criança ficou ali sozinha e aquela mulher polaca, que já estava a ajudar como voluntária, transformou a sua vida para agarrar aquela criança. Conseguimos de facto, nas guerras, ver o melhor e o pior da humanidade. Mas daqui levo sobretudo histórias positivas, de esperança. Como ver na maternidade e nos cuidados intensivos aqueles bebés a ganharem força nas incubadoras, passarem depois para o pós-intensivos já nos braços das mães e os pais gratos aos profissionais por estarem ali. Dá orgulho na humanidade e na nossa capacidade de, perante a adversidade, darmos o nosso melhor.

Temos já quase 50 mil pedidos de proteção temporária em Portugal de pessoas que fugiram da Ucrânia. Que imagem lhe dão do país aí?  

Os destinos preferenciais no imaginário dos ucranianos são sempre a Polónia, a Alemanha e Áustria. Acho que isso também tem a ver com o facto de os que falam uma segunda ou terceira língua, porque muitos falam ucraniano e russo, é dominaram o alemão mais do que o inglês, e muito menos o português. Acho que é uma tentação natural. Portugal é visto como um país seguro mas longínquo para o imaginário ucraniano. Mas isso não nos retira a responsabilidade de, como europeus, continuar a estar ao lado da Ucrânia e espero que esta nossa campanha também ajude a dar esse contributo. 

Viajou esta sexta-feira para Kiev para reunir com o ministro da Saúde ucraniano e com o presidente do grupo parlamentar de amizade Portugal-Ucrânia. Como foi percorrer os 500 quilómetros entre Lviv e a capital?

Fomos de noite, tivemos de pedir uma autorização especial porque o ministro foi chamado para uma reunião e a única hipótese era reunirmos às 10. Arrancámos às 2 e fizemos as sete horas seguidas sem nenhuma sirene tocar, o que faria que tivéssemos de parar. Aqui a sirene já tocou uma vez, houve bombardeamentos de alvos militares, vemos o fumo. Nota-se ainda mais essa tensão nos postos de comando e controlo, quase de quilómetro em quilometro. Os edifícios estão todos reforçados com sacos de areia. Estamos sempre em estado de alerta.

Como foi a reunião com Vicktor Liashko?

Manifestou agradecimento pelas palavras de apoio. Antes de vir já tinha falado com o ministro dos Negócios Estrangeiros, não só em  meu nome pessoal, mas penso que é a opinião da vasta maioria dos portugueses. O ministro aceitou ser orador na cimeira da Unite, a plataforma global de parlamentares para pôr fim às doenças infecciosas, que vai decorrer em Lisboa em dezembro. Falámos também de eventuais parcerias com a academia para ajudar a Ucrânia a candidatar-se a financiamento europeu. Vai preparar uma mensagem para dirigir aos portugueses, à partida um vídeo na segunda-feira. Reforçou que tem havido ataques a alvo civis e hospitais, que apesar de tudo têm conseguido continuar a pagar salários, etc, mas tudo o que era reformas que exigiam financiamento estão paradas e veem-se forçados a ajustar o sistema de saúde às migrações internas. Uma das coisas em que deixou uma mensagem sobre a necessidade de apoio foi precisamente na parte de traumatologia e medicina de reabilitação para os feridos de guerra.

Gostava de lançar algum projeto?

Para já, se conseguíssemos angariar as verbas necessárias para esta campanha, gostaríamos de voltar cá para vermos o investimento feito com os donativos portugueses. Sairei daqui no próximo dia 2 de agosto com essa esperança de voltar, esperemos nós numa Ucrânia já livre e em paz.