O artigo que nunca quis escrever

Se o que vem sendo publicado for verdade, o caso é simples: a estrutura da Igreja em Portugal falhou, tal como vem falhando um pouco por todo o mundo. A mentalidade enquistada de proteção e de relativismo sobre estes casos parece manter-se. A pedofilia não se trata nos claustros das Catedrais, trata-se nos tribunais.

por Francisco Gonçalves

O filme O Caso Spotlight fez-me chorar como nenhum outro na minha vida adulta. O caso dos padres católicos em Boston que, durante anos, abusaram de crianças e que, durante outros tantos anos, viram ocultados os seus crimes, sendo protegidos pela estrutura da Igreja Católica norte-americana foi um murro no estômago.

Quem, como eu, passou por um colégio católico, sabe que os padres eram o nosso Norte, a nossa bússola moral. O filme trouxe-me as memórias dos amigos que fiz, da confiança ilimitada que depositava naqueles padres, a quem muito devo pela minha formação. Pensei no que seria a minha vida se, naqueles anos, tivesse passado pelo mesmo. A violação de um vínculo de confiança como este fica para a vida. Aliás, destrói uma vida!

Aos poucos, foi-se sabendo que a história não se ficava pelos EUA. Um pouco por todo o mundo, sucediam-se réplicas do que acontecera em Boston. Só em França, foram registados pelo menos 330 mil casos de abuso ou violência sexual contra menores ou pessoas vulneráveis. A prática era, pois, recorrente: a estrutura da Igreja levava décadas (ou séculos) a proteger os abusos de padres as sobre crianças que deveriam proteger.

O próprio Vaticano teve de reaprender a lidar com estes casos. Desde a sua eleição, em 2013, que o Papa Francisco luta contra a pedofilia na Igreja e já afirmou que sentia «vergonha» pela «longa incapacidade da Igreja» para lidar com casos de padres pedófilos, pedindo aos católicos «responsabilidade, para que a Igreja seja um lar seguro para todos».

Nos últimos dias, veio a público uma notícia que o anterior cardeal Patriarca, D. José Policarpo, bem como o atual, D. Manuel Clemente, tiveram conhecimento de um caso de abuso de uma criança (então com 11 anos) por um padre. O anterior cardeal pela mãe da vítima, o atual cardeal, pela própria.

Se o que vem sendo publicado for verdade, o caso é simples: a estrutura da Igreja em Portugal falhou, tal como vem falhando um pouco por todo o mundo. A mentalidade enquistada de proteção e de relativismo sobre estes casos parece manter-se. A pedofilia não se trata nos claustros das Catedrais, trata-se nos tribunais.

A reação do Presidente da República não podia ser pior, tendo dito que, do ponto de vista pessoal, não vê razões para os cardeais terem «querido ocultar da justiça» crimes. Claro que a entrar a meio do seu segundo mandato, o Presidente da República já nos habituou ao seu estilo de comentar tudo, mas aqui… queima.

Como disse o Papa Francisco, no passado, sobre este tema, a preocupação deve estar «em primeiro lugar com as vítimas, com grande dor, pelas suas feridas». Ao referir-se a um tema desta gravidade com a leveza da «opinião pessoal» como fez, parece revelar uma moral frouxa, dificilmente compatível com as obrigações do cargo que desempenha.

O Presidente da República, magistrado máximo da Nação, deve ser o nosso farol moral. Relativizar, independentemente dos motivos, a ocultação de crimes de pedofilia, é demasiado grave. Para as vítimas, que sofreram um crime horrendo, e para todos nós, tenhamos Fé ou não, mas que queremos ser cidadãos de uma sociedade decente. Não bastam as dúvidas sobre uma possível ocultação de crimes de pedofilia, para agora termos uma esponja sobre essa ocultação.

Estas notícias surgem no auge do verão, entre fogos que não se apagam e urgências hospitalares que se encerram, mas não se podem perder na ‘silly season’. A Igreja e a comunidade devem às vítimas um tratamento digno e com verdade, não a esponja da «opinião pessoal».