O avô Mário

Por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

 Quase que me deu uma apoplexia quando li a tua última carta!                                              

Outro neto? Como assim??

Sabes que o Alvim sempre que me vê diz-me: «Eu é que sou o neto preferido da Alice!». Dá-me uns nervos!

Depois percebi que esse “novo neto” se trata de uma criança. Que até ajuda as velhinhas, como tu, a levarem os sacos para casa.

Fiquei mais descansado. Desses gosto muito!

Por falar em avós, hoje aparece-me falar do “avô Mário”, teu marido.

Conheci-o, apenas, através da televisão e do que escrevia. Mas com as histórias que contas, é como se o tivesse conhecido pessoalmente.

Um grande defensor da liberdade, que escreveu com habilidade, durante anos a fio, para contornar a censura.

Os mais velhos hão-de recordar aquele que é considerado, por muitos, o primeiro crítico de TV que existiu em Portugal.

Mas Mário Castrim foi muito mais do que crítico de TV! Foi jornalista, escritor, teu marido, pai dos teus filhos, avô dos teus netos. Deixou uma vasta obra publicada e deve ser recordado no nosso Diário.

O importante é recordar a pessoa que a maioria conhecia por Mário Castrim, mas que na verdade se chamava Manuel Nunes da Fonseca.

Em 2020 teríamos realizado diversas iniciativas para celebrar o seu centenário. Ver se organizamos essas comemorações este ano.

Como tu sabes, motivos não nos faltam para comemorar.

Fala-me do “avô Mário”.

Conta-me tudo sobre o facto do Mário ser comunista e ao mesmo tempo um grande católico, que te oferecia imensas bíblias.

Não te esqueças de partilhar a história do telefonema que o Mário, já depois de morto, recebeu de Deus.

Ainda recentemente encontrei o José Cid que me disse: «O teu avô [Mário Castrim] não era nada fácil. Havia muita gente que não gostava dele. Mas primava pela qualidade!».

E assim chegamos a agosto, um mês que para a maioria dos portugueses é um mês de férias.

Para nós prevê-se um mês com muito trabalho na Feira do Livro e não só.

Bjs

 

Querido neto,

Fico contente por te lembrares do dia de anos de Mário Castrim, meu marido. Neste dia 31 de julho faria 102 anos. Ainda para mais, estando eu a viver na Ericeira, uma terra que ele adorava. Viemos para cá em 1971, para uma casa muito pequena na Rua de Baixo – mas com um terraço magnífico diante do mar.

Eu tinha 18 anos quando conheci o Mário. Eu costumava mandar uns textos para o jornal. Durante muito tempo ele respondia a dizer que aquilo era muito mau, mas que continuasse. (E estava cheio de razão…).

Mas um dia lá devo ter melhorado alguma coisa e ligou-me a dizer que fosse ter com ele ao jornal. E eu fui. Ele estava no cimo das escadas que iam dar à redação. E ainda hoje me lembro de ter subido as escadas e de pensar “está é a profissão que eu quero, e este é o homem que eu quero!”.

E foi assim. Ele tinha mais 23 anos do que eu, e era casado (naquele tempo não havia divórcio). Foi a maior escandaleira neste país. Os meus amigos só me diziam «ele é tão doente e, com esta idade, vais ser enfermeira dele toda a vida». Na verdade, ele era muito doente, mas aconteceu exatamente o contrário: ele é que foi sempre meu enfermeiro…

O Mário foi sempre, até à hora da sua morte, um comunista convicto e um católico convicto. Coisa que poucas pessoas entendiam… A primeira prenda que ele me deu foi uma Bíblia, dizendo: «Quando te sentires deprimida ou necessitares de um conselho, abre-a ao calhas e encontrarás sempre o que precisas».

Ainda hoje faço isso.

No dia do enterro até aconteceu uma coisa curiosa. Esqueci-me de ver se havia alguma coisa nos bolsos do casaco dele. De repente, toca um telemóvel, de dentro de um dos bolsos. Fui a correr buscá-lo e no ecrã vejo escrito… “Deus”. Nós tínhamos um amigo chamado João de Deus (que o Mário gravou no telemóvel como “Deus”). E eu disse para a minha filha: «O teu pai já lá chegou».

Fica bem e aproveita agosto.

Bjs