Professor no Cercal do Alentejo

Do Cercal do Alentejo trouxe a vontade de regressar, confirmado pelo sorriso dos alunos no último dia de aulas, que apenas pediam estabilidade nas suas aprendizagens

por Francisco Mota

Os sinos tocaram arrebate, estávamos em abril a pouco mais de dois meses do final do ano letivo e o sr. ministro anunciava que eram cerca de 20000 alunos que não tinham professores. Para quem, como eu, que acredita no elevador social para ascender na vida, na igualdade de oportunidades independentemente do estrato social, crença ou local de origem, senti uma revolta interior. Enquanto português e contribuinte não posso aceitar, que o Estado negligencie cidadãos, os deixe para trás e não lhes garanta a mesma igualdade de circunstâncias para que possam fazer as suas escolhas em liberdade. Tratando-se de Educação, um dos pilares fundamentais do desenvolvimento do País, onde as opções de hoje se refletem no futuro que teremos amanhã, maior é o grito perante tanta inoperância e incompetência, de quem está a condicionar os rapazes e raparigas de construírem livremente o seu projeto de vida. O Estado falha horrorosamente, sem que nada nem ninguém seja responsabilizado. Ser jovem com ambições no Norte, Centro, Sul, litoral ou interior infelizmente não é igual. E depois dentro das próprias regiões, um jovem de um centro urbano como Porto ou de Lisboa e um outro de um concelho mais interior destes distritos, volta a não ser igual. As condições, desafios, dificuldades e oportunidades não são as mesmas, mas pior que isso é ninguém se empenhar o suficiente para que esse quadro se altere. Num ato de consciência e por considerar que não o fazer seria uma traição ao meu país, depois de este ter-me proporcionado a oportunidade de estudar e formar, saí da minha zona de conforto de forma a contribuir para a mudança de paradigma. Concorri e embarquei. Uma vez que não cumpri serviço militar, defini como sendo a maior e mais desafiante missão de servir a nossa amada pátria: a de ser professor de História pela primeira vez.

O destino foi o Agrupamento de Escolas do Cercal do Alentejo, a mais de 500km de Braga, a cerca de 5h de viagem e numa das regiões mais cobiçadas pelos forasteiros. A Costa Vicentina, juntamente com o Parque Natural do Sudoeste Alentejano começa em São Torpes, concelho de Sines, e termina na Praia do Burgau, já no Algarve, porém, e quase como um dado adquirido, todos a terminam no imponente e ventoso Cabo de São Vicente, em Sagres, o ponto mais a sudoeste da Europa Continental. A beleza das suas praias, a gastronomia e a natureza são razões mais do que suficientes, para que o turismo seja uma grande fonte de rendimento e desenvolvimento económico, num território em que a desertificação é a maior cruz das suas gentes.

Enquanto professor deslocado, esta foi a primeira dificuldade com que me vi confrontado, o alojamento. Poucas casas para arrendar, e o que existia com valores insuportáveis para o vencimento de professor. Mas ao bom jeito português de bem receber e com alguma solidariedade, consegui uma casa próxima do orçamento, mas apenas até ao final do mês de junho, porque daí em diante até setembro o turismo é o ‘São João’ daqueles proprietários. Foram dois meses distantes da família, porque transportes públicos e mobilidade é um luxo da capital e uma miragem no país real, com o valor dos combustíveis incomportáveis e uma inflação galopante não ganhávamos para viagens.

A escola tinha boas condições infraestruturais, ferramentas tecnológicas e uma equipa de auxiliares inexcedível, o que permitia uma boa simbiose para o desenvolvimento do nosso trabalho enquanto docentes. Infelizmente o ambiente que brotou ao longo do tempo desmoronou todo o potencial da comunidade educativa. A visão de escola é míope, os objetivos, as percentagens e o cumprimento de metas sobrepõem-se à exigência, rigor, qualidade do ensino e mérito. O aluno e a sua aprendizagem não são o centro da ação e os rapazes e raparigas são medidos por baixo. Os professores ou qualquer outro elemento da comunidade educativa são vistos como um simples número. Talvez a falta de professores e as taxas de absentismo, não sejam apenas condicionadas pela dura realidade circunstancial da escola ou pela falta de condições ministeriais dadas aos docentes deslocados, mas também da forma como somos destratados e desconsiderados. Ao invés daquilo que nos é imposto, não é o Homem que se estatiza, mas o Estado que se Humaniza. A educação é a pedra basilar do desenvolvimento e os professores são a ferramenta insubstituível, dentro e fora da sala de aula, que aos olhos dos ‘moços’, somos vistos como referências. A missão patriótica de servirmos as novas gerações não vale de nada se não consolidarmos os alicerces do conhecimento, com os alicerces dos valores. Os valores da solidariedade, partilha, respeito pela diferença e de amor ao próximo. Pela responsabilidade que mantemos, enquanto agentes educativos, devemos agir pelo exemplo, porque mais importante que sermos bons, devemos praticar o bem. Se as lideranças não agem pelo exemplo, como seremos capazes se semear o futuro?

Inspirei-me nos meus professores e nos valores que me transmitiram para cultivar a esperança num futuro melhor, mais ambicioso e livre para cada um dos meus alunos. Com eles mantive uma relação pedagógica de proximidade e de exigência, mantendo autoridade, sem qualquer tipo de esforço adicional para além do respeito e das regras inicialmente estabelecidas. Mesmo a realidade de cada escola e turma sendo distinta e em que cada aluno tem as suas próprias particularidades, existem fatores comuns que são incontornáveis, como a falta de preparação para o método de estudo; desconhecimento das matérias já lecionadas; desmotivação e ausência de estímulo ao raciocínio, relacionamento de conceitos e desenvolvimento de conteúdos. Alguns destes fatores podem estar relacionados com a pandemia, que assolou o mundo e com consequências nefastas para as aprendizagens, mas estes problemas não se resolvem varrendo a questão para debaixo do tapete do facilitismo. Sendo um período, demasiado, curto para lecionar e em que os alunos já não tinham a disciplina desde o início do 2.º semestre foi um desafio redobrado para mim e para eles. Rapidamente sintonizaram-se para que as aulas se tornassem no essencial enquanto espaço de aprendizagem contínua, estímulo ao raciocínio e relacionamento de conteúdos, épocas e contextos sociais, económicos e políticos enquanto base de interpretação dos acontecimentos históricos.

Em tão pouco tempo, estou consciente que não consegui recuperar o tempo perdido, nem muito menos alterar o quadro das dificuldades, mas estou convicto que o trabalho desenvolvido deixou sementes para o futuro. Este é o testemunho na primeira pessoa, mas que pretende ser a voz das dificuldades de todos aqueles que passam décadas com as malas às costas, a contar os trocados para sobreviver e que em nome de uma carreira, muitas das vezes, pagam para trabalhar. Do Cercal do Alentejo trouxe a vontade de regressar, confirmado pelo sorriso dos alunos no último dia de aulas, que apenas pediam estabilidade nas suas aprendizagens. Foram dois meses mágicos. Obrigado a todos os meus colegas (professores, auxiliares e técnicos) e alunos, por me terem ajudado a ser professor, quem sabe para o resto da vida.