Idi Amin. A besta também gostava de sangue dentro dos ringues

Governou o Uganda de 1971 a 1979 através de uma das mais brutais e sanguinárias ditaduras da História. Fez carreira no exército britânico, começando como cozinheiro e, nessa altura, dedicou-se ao boxe tendo sido campeão de pesos-pesados entre 1951 e 1960. Poucos se dispunham a enfrentá-lo.

Koboko, na região norte do Uganda, tornou-se uma terra maldita. Afinal foi lá que nasceu, em 1925, não se sabe ao certo em que dia de que mês (e o animal resolveu fazer disso um mistério), Idi Amin Dada Oumee, que pode ter tido um nome divertido, meio infantilóide, mas acabou por ficar para a História como uma das maiores bestas da Humanidade.

Idi Amin era filho de um casal de tribos diferentes e até um tanto ou quanto incompatíveis. O pai, Andreas Nyabire, era um Kakwa, gente que veio da Núbia e das margens do Nilo Branco e que, depois de se instalarem nas zonas que hoje fazem parte do Uganda e da República Democrática do Congo, foram duramente perseguidos pelos Dinka. A mãe, Assa Aatte, era Lugbara, um povo originariamente camponês que cedo se deixou cristianizar._Não é possível perceber África e as suas idiossincrasias sem se conhecer a sua complexidade étnica e a sua diversidade religiosa, mas também não me vou meter por esses labirintos no decorrer desta crónica já que não foi, sequer, preparada para isso. Volto portanto à vaca fria, que nesta caso concreto era mais um boi e de maus fígados. Até pode ter sido porque o pequeno Idi Amin Dada foi, desde que nasceu, um estupor da pior espécie, que os pais da figurinha não se aguentaram muito tempo juntos e o filho não teve direito a uma educação de jeito, como muitos viriam a testemunhar e lamentar uns anos mais tarde. Face à pouca capacidade intelectual do adolescente, vamos encontrá-lo no exército britânico pouco depois do fim da II Grande Guerra, em 1946, servindo de ajudante de cozinha no King’s African Rifles, um regimento colonial que tinha como missão manter o mais sossegada possível aquela zona do Império.

Amin não era propriamente um indivíduo inteligente, mas sabia perfeitamente a quem servir com uma certa sabujice. Não tardou a ser um soldado a sério. Deixou os tachos e as panelas para pegar numa espingarda e, em 1949, já estava no Sudão para combater os rebeldes Shifta. Entretanto dedicara-se ao boxe. O tamanho ajudava e a sua brutalidade inata também. Esmurrava os opositores com um prazer inequívoco e rasgava-lhes sobrolhos e partia-lhes narizes com a impassividade de uma máquina. Em 1951 tornou-se campeão ugandês de boxe de pesos-pesados, título que conservou até 1960. E com uma facilidade inusitada. Pouco eram aqueles que se dispunham a enfrentá-lo nos ringues. Além de ser uma besta de 124 patas, Idi Amin era igualmente um batoteiro de ferraduras, sempre rodeado por um grupo de meliantes ameaçadores que avisavam os seus possíveis adversários do que lhes poderia acontecer se tivessem a desfaçatez de lhe acertarem nalgum ponto sensível. Enfim, nada que não fosse de esperar de um sacripanta como ele. Quando resolveu retirar-se, dois anos antes de o Uganda obter a independência, proclamou-se campeão invicto. Ninguém fora capaz, ou se atrevera, a deitá-lo ao tapete.

Em 1971, levado ao colo pelos ingleses, Idi Amin Dada, entretanto promovido a major e, depois, a general e comandante-em-chefe do exército ugandês, tornou-se o terceiro presidente do Uganda. Era público e notório que criara e acumulara uma enorme fortuna pessoal à custa de desvios de fundos do exército e andava a ser investigado pela polícia há muito tempo. Resolveu o assunto com a facilidade com que derrubava opositores nos ringues: armou um golpe de Estado contra o presidente no activo, Milton Obote, e tomou o seu lugar. Três anos depois, cheio de si como o fedelho que nunca deixou de ser, resolveu apoucar o treinador nacional de boxe, um tal de Peter Seruwagi, acusando-o de não ter sido capaz de fazer um trabalho decente na preparação dos seus boxeurs para o Sexto Campeonato Africano de Boxe Amador, que teve lugar precisamente em Lugogo, um dos bairros da capital do Uganda, Kampala, com maior números de instalações desportivas. E, assim sendo, decidiu que a melhor maneira de comemorar a abertura da competição era com ele, o presidente, a defrontar Seruwagi num combate festivo para gáudio do público ugandês. Mal o gongo soou, Amin lançou-se sobre o adversário com os olhos raiados de um ódio feroz e começou a socá-lo nos ouvidos e no nariz até o derrubar. Com medo das consequências, o árbitro declarou um KO imediato ainda no primeiro round. Amin ergueu os braços com o descaramento infame de um Nero negro e ficou extasiado a ouvir os aplausos da multidão. Continuava invencível! E não se coibiu de explicar, no final: «Politics is like boxing — you try to knock out your opponents». Ou, naquele caso específico, o boxe foi como a política. Tal e qual a besta a via.

O Herói de África

Já quase tudo se escreveu e filmou sobre a vida de Idi Amin Dada, o homem que dizia de si próprio: «I am the hero of Africa!». Dois filmes ficaram-me particularmente na retina, e provavelmente nas retinas dos leitores: Rise and Fall of Idi Amin, dirigido por Sharad Patel, com Joseph Olita no papel do bicho, e The Last King of Scotland, dirigido por Kevin Macdonald e com Forest Whitaker a oferecer-nos uma imagem fantástica do carniceiro. No primeiro, há cenas inesquecíveis:_Amin abre o frigorífico e mostra aos seus convidados duas cabeças decapitadas; noutra mastiga um bocado de pele de uma das suas vítimas. No segundo, conta-se um episódio que revela bem o estado ensandecido da cavalgadura: em 1977, na altura em que o Uganda era (imagine-se!!!) membro da Comissão das Nações Unidas Para os Direitos Humanos (pobre Humanidade!), Amin respondeu ao corte de relações diplomáticas do Reino Unido com o Uganda com a declaração de que acabara de se tornar oficialmente Conqueror of the British Empire, tendo acrescentado esse epíteto ao seu currículo oficial. O ridículo não o matou. E, por isso, descrevia-se a si próprio como His Excellency, President of Uganda, President, President for Life, Field Marshal Al Hadji, Doctor Idi Amin, VC, Distinguished Service Order, Military Cross, Lord of All the Beasts of the Earth and Fishes of the Sea, and Conqueror of the British Empire in Africa in General and Uganda in Particular. Se alguém não tinha dúvidas sobre o facto de ser verdadeiramente o Senhor de Todos os Animais da Terra (deixo a autoridade sobre os Peixes para ser discutida entre ele e o Padre António Vieira), o simples facto de se ter assumido ainda como Rei da Escócia, simplesmente porque simpatizava com os tiques independentistas escoceses em relação aos ingleses, dá bem ideia da confusão que reinava na cabeça do mamífero. Foi por esta altura que vomitou mais uma das suas tiradas grotescas: «I myself consider myself the most powerful figure in the world!». Desculpemos, por ser demasiado insignificante na vida de Amin, a atrapalhação no inglês. Afinal a única língua que verdadeiramente aprendeu foi a de caserna. E reconhecera exatamente essa sua condição no seu discurso de tomada de posse como presidente do Uganda: «I am not a politician but a professional soldier. I am, therefore, a man of few words and I have been brief through my professional career».

O Carniceiro de Kampala

Nunca se saberá ao certo quantas pessoas morreram durante a ditadura de oito anos deste amante do boxe que se considerava um mero soldado e, ao mesmo tempo, rei da Terra e dos Oceanos. As estimativas são tão pouco firmes que vão de 80 mil a 500 mil assassinados ou desaparecidos.

Um facto é de sublinhar e, já agora, de recordar para sempre: tal como muitos outros monstros da sua espécie, Idi Amin foi visto com bons olhos quando derrubou Obote (que se encontrava em Singapura numa reunião dos países da Commonwealth) no golpe de Estado desferido no dia 25 de Janeiro de 1971. Descobrir-se-ia, mais tarde, um memorando interno do Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico referindo-o como: «A splendid type and a good football player». Desmentiu por completo a imagem de tipo esplêndido e, para além do boxe, nunca se afirmou como grande desportista em nenhuma outra modalidade. Mas, na altura, parecia ser um governante capaz de assegurar os interesses das potências ocidentais e, por isso, ainda se devem ter bebido à sua conta uns conhaques na Queen’s Gate.

Obote exilou-se na Tanzânia, sob a proteção de Julius Nyerere, e mais de 20 mil ugandeses, sobretudo das etnias Ancholi e Lango, fugiram do novo país de Amin. Uma tentativa de retomar o poder, levada a cabo no ano seguinte, irritou profundamente o novo e sensível presidente e as retaliações não demoraram: no início de 1972, um ataque em massa levou ao assassínio de mais de 5 mil pessoas pertencentes às duas tribos, e não houve piedade para com ninguém. Líderes religiosos, juízes, estudantes, intelectuais, camponeses ou operários: não houve quem escapasse à fúria de Amin. Foram tantos os corpos atirados ao Nilo que entupiram a usina hidro-eléctrica de Owen Falls, em Ninja. A besta mostrava a sua verdadeira cara, mas o mundo não parecia grandemente preocupado com isso. Como geralmente acontece, os cidadãos das grandes cidades dos países tranquilos escutavam as notícias e encolhiam os ombros: «É lá entre eles, no Uganda. Mas, afinal, onde fica o Uganda?».

Dada não é nome. É alcunha. Idi Amin gostava de ser tratado assim: quer dizer Paizinho. O Paizinho viria a ser chamado, depois da sua queda, como Carniceiro do Uganda. Foi preciso esperar por 1977 e pela fuga de Henry Kyemba para Londres, ele que fora antigo homem de confiança de Obote mas decidira, aquando da revolução, apoiar o novo governo, atingindo o cargo Procurador Geral e, depois, de Ministro da Justiça de Amin, para se saber algo de mais concreto sobre o que se estava a passar nesse tal país chamado Uganda. O livro publicado por Kyemba chamou-se A State of Blood e revelava horrores que não deixava indiferente o mais bacoco dos leitores.

Menos de um ano antes, no dia 27 de Junho de 1976, já muita gente fora obrigada a abrir o atlas para descobrir a exata localização de Entebbe. Dada, o Paizinho, deu luz verde para que o grupo de Operações Externas da Frente Popular para a Libertação da Palestina que desviara o avião da Air France que fazia o voo entre Tel Aviv e Paris aterrasse no aeroporto ugandês. 248 passageiros iam a bordo. Em Entebbe foram separados em dois grupos – israelitas e não-israelitas. Os assaltantes exigiram a libertação imediata de 40 palestinianos presos em Israel e de outros 13 detidos em vários países em troca dos que estavam na sua posse. Os serviços de inteligência israelita, a Mossad, tomaram a decisão de intervir e o resgate foi feito numa operação que ganhou o nome de Thunderbolt. Como um raio, durante a noite, cem comandos atacaram o aeroporto de Entebbe e levaram 102 dos raptados que continuavam no Uganda após uma semana de negociações. Três morreram.

Entebbe foi um golpe terrível para Idi Amin. Percebeu que não controlava as fronteiras do seu próprio país. Treze soldados ugandeses foram acusados de cooperarem com a Mossad e Amin matou doze deles a tiro de pistola, pessoalmente. Dora Bloch, uma israelita de 74 anos que tinha cidadania britânica e fora levada ferida para o hospital durante o ataque, viu-se também assassinada, mais tarde, tal como cinco médicos e enfermeiros que tinham tentado evitar que a arrastassem para fora das instalações pelos chacais de Amin que continuou a afirmar publicamente que os seus serviços, o famigerado State Research Bureau, não faziam a mínima ideia da presença de Dora no Uganda. Kyemba confirmou, a seu tempo, que Dada tinha dado ordens expressas para que ela fosse abatida. Não queria mais testemunhas do que se passara em Entebbe.

Dada, o Paizinho, já não era o homem popular que tomara o poder em 1971. O povo virou-se contra o grandalhão que aplaudira nos ringues de boxe, o exército dividiu-se, o general Mustafa Adrisi, vice-presidente do Uganda começou a organizar uma autêntica oposição. A sua última grande frase não passou de pura bravata: «If you don’t want to fight, I’ll do it myself!». De pouco lhe serviu. No dia 11 de Abril, a besta abandonou Kampala para sempre. Morreu em Meca, no exílio. Parece que a sua autópsia não revelou a existência de um único escrúpulo.