A guerra pelos olhos de quem nela participou

A Beleza e a Dor da Guerra oferece um espantoso mosaico humano que transporta o leitor para os palcos da Grande Guerra de 1914-18.

O uniforme da cavalaria austro-húngara era sem sombra de dúvida o mais elegante. Distinguia-se pelos «seus casacos azuis com gola de pele, as suas calças vermelhas bordadas e as suas barretinas de couro ornadas com uma crista, as suas plumas, os seus cintos, os seus cordões, os seus botões dourados, os seus galões e as suas botas altas de couro bem polido», descreve Peter Englund em A Beleza e a Dor da Guerra (ed. Bertrand, 2014). Mas essa manifestação de requinte e orgulho imperial não se compadecia com a dureza dos tempos que se viviam. Em 1917 deixava de ser vista nos campos de batalha, substituída por uma farda mais simples, mais prática – e mais feia. «É mais um pedaço da velha Europa que desaparece», nota o historiador.

A Grande Guerra de 1914-18 foi um terramoto que sacudiu as fundações da Europa e derrubou a realidade conhecida, que ao sair de cena deu lugar a um mundo novo. Foi o último grande conflito armado em que se observaram certas regras de cavalheirismo (nomeadamente no tratamento dado aos oficiais que eram feitos prisioneiros); e o primeiro da era mecânica, em que se usaram blindados, submarinos, aviões, metralhadoras e até um canhão cujos projéteis atravessavam a estratosfera.

A Beleza e a Dor da Guerra mostra este mundo em mudança, nas suas mais diferentes facetas e nuances, através das histórias de 19 pessoas reais, que foram registando as suas experiências e impressões ao longo da contenda. Entre elas há uma menina alemã que tem 12 anos quando deflagra a guerra; um alto funcionário público francês, próximo do poder; um piloto de combate belga; uma enfermeira inglesa que se voluntaria para assistir o exército russo; e um italo-americano que regressa ao seu país de origem, se alista no exército italiano, se arrepende e acaba por ir parar a um manicómio.

Este espantoso mosaico humano permite ao leitor acompanhar o conflito pelos olhos de quem nele participou. O subtítulo do livro – ‘História íntima da Primeira Guerra Mundial’ -não podia ser mais apropriado.

O caso mais curioso é, porém, o de Rafael de Nogales, um venezuelano de 36 anos, oriundo de uma família com pergaminhos militares, «que combateu como voluntário na guerra russo-japonesa de 1904, onde foi ferido, e foi garimpeiro no Alasca […] e cowboy no Arizona». Sequioso de novas aventuras, vai para a Europa e oferece os seus préstimos à Bélgica. É recusado. Seguem-se a França – recusado – e o Japão – idem. Por fim, despeitado e quase em desespero, vai bater à porta do inimigo – as potências imperiais – e acaba integrado no exército otomano.

Nogales encontra-se na cidade de Van, na Turquia, quando esta é destruída pela própria artilharia turca. «São precisas duas horas de fogo de canhão para que a antiquíssima catedral se desmorone numa nuvem de pó», relata Englund. Seguiu-se a grande mesquita. «Foram destruídos, no espaço de um dia, os dois principais templos de Van, que durante quase nove séculos se haviam contado entre os mais famosos monumentos históricos da cidade», lamentava o venezuelano. Mas para Nogales o pior dos horrores da guerra – muito pior – ainda estava para vir. [continua]