O privilégio de ser branco já não é o que era

Ao contrário de um negro ou um oriental milionário que, apesar de viverem em palácios e terem à disposição tudo o que o dinheiro consegue comprar – e, já agora, sentirem-se realizados e felizes –, continuam ainda assim a não disfrutar do privilégio de serem brancos que o referido mendigo possui.

por João Cerqueira

Em 1989 uma senhora chamada Peggy McIntosh, branca, rica e privilegiada, escreveu um ensaio chamado White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsack. Defendeu então que o simples facto de alguém ser branco era um enorme privilégio. E se esse alguém fosse ao mesmo tempo branco e homem, então seria um duplo privilegiado. De uma penada, a dona Peggy acaba com a luta de classes e o sofrimento dos pobres brancos. Um homem branco que viva na rua, coma do lixo e leve pontapés como um cão, por muito desgraçado que seja, continua a gozar do extraordinário privilégio de ser branco. Ao contrário de um negro ou um oriental milionário que, apesar de viverem em palácios e terem à disposição tudo o que o dinheiro consegue comprar – e, já agora, sentirem-se realizados e felizes –, continuam ainda assim a não disfrutar do privilégio de serem brancos que o referido mendigo possui.

Pobre Isabel dos Santos – que além de não ser branca é mulher.

Resumindo, aquele branco sujo e esfomeado até tem motivos para sorrir; a estes negros e orientais nenhum conforto material e realização pessoal poderá suprir a ausência do privilégio da cor da pele. Eles até poderão discordar, completamente, mas a dona Peggy é que sabe. E se não pôde chamar racistas aos não brancos que dela discordavam, chamou aos outros – ela e a sua trupe.

É portanto provável que, caso pudesse escolher, a dona Peggy preferisse mil vezes viver na rua e comer do lixo para continuar a usufruir desse privilégio de ser branca do que ter a pele escura e ser rica. Ou, então, como a carne é fraca e somos todos iguais nas fraquezas e nos desejos, talvez não. Talvez a senhora Peggy, secretamente, sem o confessar a ninguém, desejasse antes ser rica mesmo tendo a pele escura. Ou, melhor ainda, continuar como sempre esteve: branca, rica e privilegiada. Afinal, até escrever aquele livro não se envolveu em causas sociais, nem ajudou comunidades desfavorecidas. Decerto para provar a sua teoria, viveu confortavelmente entre brancos ricos, em vez de se misturar com os negros.

No entanto, fechada na sua bolha de elitismo universitário e esquerdismo alucinado, a dona Peggy é capaz de não ter descido à terra para analisar os factos. De acordo com a revista The Critic, num artigo de dezembro de 2019, o privilégio branco já não é o que era. Eis alguns factos que fariam a dona Peggy mudar de cor:

«Uma pesquisa com adultos brancos nascidos após a Segunda Guerra Mundial mostrou que, entre 1980 e 2000, apenas 18,4% dos batistas brancos e 21,8% dos protestantes irlandeses – os principais grupos étnicos brancos a se estabelecer no sul – conseguiram obter diplomas universitários, em comparação com uma média nacional de 30,1 por cento. Entre os americanos de ascendência chinesa e indiana, a média foi de 61,9%».

«Em 2016, os americanos brancos tinham uma renda familiar média de $ 67.865, menor do que os indonésios americanos ($ 71.616), paquistaneses americanos ($ 72.389), malaios americanos ($ 72.443), cingaleses americanos ($ 73.856), filipinos americanos ($ 84.620), taiwaneses americanos ($ 90), 1221) e índios americanos ($110.026)».

«57% dos americanos negros pertencem agora à classe alta ou média, em comparação com 38% em 1960, e a parcela de homens negros na pobreza caiu de 41% em 1960 para 18 % em 2016. Mas, se olharmos para a educação, os afro-americanos estão a superar os brancos. As mulheres negras, por exemplo, têm taxas de frequência universitária mais altas do que os homens brancos e, de acordo com o New York Times, ganham mais do que as brancas quando se formam».

O privilégio de ser branco também não resultou na política portuguesa. Que o diga o caucasiano Rui Rio que foi derrotado pelo descendente de indianos António Costa.

Além disso, o meu privilégio de ser escritor branco não está a funcionar na maioria das revistas de literatura e editoras americanas – e nem vou falar do meu próprio país. Nas guidelines destinadas à seleção de contos, ensaios, crítica e publicação de livros aparece, cada vez com mais frequência, regras que dão preferência a textos de minorias raciais e sexuais. Noutras, mais tolerantes, só aceitam mulheres – se possível lésbicas ou bissexuais.

De igual modo, nos recentes prémios de literatura anglo-saxónicos, os escritores brancos heterossexuais deixaram praticamente de ser nomeados para as short lists – quanto mais vencerem os prémios. E estes, além de parecerem estar destinados a toda a gente menos o tipo branco que gosta de mulheres e emite opiniões não permitidas pelos inquisidores da raça e do género, também começam a ser atribuídos, não em função da qualidade da obra, mas sim da sua temática que, obviamente, terá que abordar a discriminação sexual e racial.

Ou seja, neste novo Clube do Bolinha das raças e dos géneros inventado pela dona Peggy, o branco heterossexual, mesmo que faça um acto de contrição pela sua herança genética e vida íntima, não entra.

E ainda que isto pareça uma nova forma de discriminação sexual e racial que fomenta divisões na sociedade por colocar todos contra todos – homens contra mulheres, brancos contra negros, heterossexuais contra homossexuais, transsexuais contra lésbicas, lésbicas contra outras lésbicas mais radicais, mulheres que se sentem homens de manhã e cangurus à noite contra homens que se sentem cangurus de manhã e mulheres à noite, e etc. –, na verdade é um grande avanço civilizacional semelhante ao promovido pelas Leis de Nuremberga de 1935. Agora, em vez de se proteger o sangue e a honra alemã, protege-se o sangue e a honra de todas as vítimas dos homens brancos – os novos judeus.