Endesa. Serviços do Estado vão ter de denunciar faturas suspeitas

Novo despacho do Governo define regras de validação prévia das faturas da energia da Endesa, mas afinal nem todas serão passadas a pente fino, só as que os gestores de contrato considerem irregulares. E restantes comercializadores também vão ter de alterar apresentação de facturas.

Uma semana depois de o Governo anunciar que todas os pagamentos de serviços do Estado à Endesa ficariam sujeitos a validação prévia pelo Secretário de Estado do Ambiente e da Energia, um novo despacho vem dar um passo atrás. Afinal não serão sujeitas a escrutínio, como se lia no diploma publicado a 2 de agosto, “quaisquer faturas emitidas pela Endesa independentemente do seu valor”, mas apenas aquelas em que os gestores de contrato entendam que existem irregularidades. E também não será João Galamba o primeiro escrutinador das faturas, que terão de ser enviadas pelos serviços do Estado à Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE).

Dúvidas Inicialmente, a interpretação do novo despacho, publicado na segunda-feira à noite, parecia dar a entender que a validação obrigatória das faturas passaria a abranger todos os comercializadores do setor, e não só a Endesa, levando mesmo vários meios de comunicação a noticiar tal informação, acabando depois por corrigi-la ao longo do dia. O próprio Ministério do Ambiente e da Ação Climática garantiu, em resposta por escrito ao i, que “a abrangência é a do despacho original do Sr. Primeiro-Ministro, incidindo a validação apenas sobre as faturas da Endesa”.

O despacho remete aliás para o despacho da semana passada, embora em alguns pontos acabar por o contradizer. Relativamente às faturas da Endesa, determina-se que “nos casos em que o gestor do contrato verifique desconformidade” nos valores apresentados na fatura, este “deve proceder ao reenvio da correspondente fatura” à ENSE, que tem dez dias úteis para levar a cabo a análise da mesma.  Caso seja confirmada a desconformidade, a fatura deverá – aí sim – ser submetida ao secretário de Estado do Ambiente e da Energia, para que este assine um despacho de não validação. 

Antes disto acontecer, a operadora tem desde já de acrescentar novos elementos nas faturas. “Todas as faturas emitidas às entidades compradoras vinculadas” – entenda-se entidades de serviços do Estado que têm contratos com a Endesa, e que estejam sujeitas a pagar o referido ‘custo de ajuste’ – vão ter de incluir “informação referente ao benefício líquido decorrente da aplicação do mecanismo de ajuste dos custos de produção de energia elétrica, […] nos termos a definir pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE)”. 

No que toca aos restantes comercializadores no mercado livre, estes podem optar pela inclusão, nas respetivas faturas, “da informação respeitante ao benefício líquido decorrente da aplicação do mecanismo de ajuste dos custos de produção de energia elétrica, […] sendo esta inclusão obrigatória sempre que o custo do ajuste conste da respetiva fatura”, introduz o documento, o que implica mudanças na faturação, pelo menos em alguns casos, para todo o setor.

Sobre as ‘regras’ das faturas da eletricidade impostas neste despacho, em declarações ao i, fonte da Iberdrola disse que “não comenta ações do Governo”, mas garante que “como sempre, cumprirá com os contratos assinados com os seus clientes e com a legislação e normas em vigor”.

O i procurou ter uma reação da Endesa, que mediante o diploma terá de reformular as suas faturas a partir de hoje, mas tal não foi possível até à hora de fecho desta edição.

críticas Já o despacho assinado por António Costa no início do mês tinha causado polémica, e esta ‘confirmação’ com o despacho de João Galamba não ficou atrás nas ‘ondas de choque’ que causou.

“Se o despacho de António Costa visando especificamente a Endesa foi a entrada de leão, este despacho de João Galamba é a saída de sendeiro”, começa por acusar João Paulo Batalha, vice-presidente da associação Frente Cívica.

“Primeiro, o despacho do secretário de Estado aplica-se a todos os contratos de energia, e não apenas aos da Endesa, o que indicia que o Governo estava inseguro em relação à legalidade do despacho inicial de António Costa, que criava procedimentos de pagamento especiais para uma única empresa”, acusa o especialista em transparência, considerando que “o ‘procedimento de validação’ pelo secretário de Estado é procedimento nenhum”. 

Uma vez confrontado com a resposta do MAAC ao i, esclarecendo que a incidência da validação será apenas sobre as faturas da Endesa, João Paulo Batalho diz: “O despacho de João Galamba fala em ‘operadores’, no plural. Logo para começar vamos ter a bagunça interpretativa. Pior era impossível”.

“O controlo das faturas fica com os organismos que as contrataram, como é natural e óbvio. O despacho lista um conjunto de instruções para comparar preços de faturas, como se os gestores de contrato nos órgãos da Administração Pública fossem crianças imbecis, que não sabem ler uma fatura”, critica o responsável, dizendo que “eventuais desconformidades nas faturas, que em situações normais seriam tratadas diretamente entre a entidade pública cliente e o fornecedor, têm agora de fazer uma via sacra para a ENSE e, eventualmente, para o próprio secretário de Estado, sendo que o resultado final é o mesmo: é sempre a entidade contratante que acaba a lidar com o seu fornecedor de energia, se houver faturas a contestar”. É a criação de “nova burocracia” para “não se mudar rigorosamente nada”, acusa, concluindo: “O Governo quis falar com voz grossa a uma operadora elétrica e para isso criou uma ficção absoluta para puro teatro mediático. Isto é dolorosamente ridículo”.

Determinação bombástica Também crítico deste despacho foi um especialista do setor da energia ouvido pelo i, que preferiu manter o anonimato.

“Julgo que é uma forma de ‘enquadrar juridicamente’ a determinação bombástica de António Costa que especificamente parecia contemplar apenas a Endesa”, disse, considerando que “nesta vertente aproveitaram para incluir uma vertente capciosa mas hábil, estipulando que quem introduzir na fatura esses ‘Custos de Ajuste’ tem também que explicitar as vantagens que o Decreto-Lei 33/2022 introduza”.

“Só que, tanto quanto sei, só a ERSE tem as informações e as bases de cálculo para fazer essa determinação, pois esse cálculo inclui várias vertentes a nível ibérico, alguns função de exportações da Ibéria para França”, acusa ainda a mesma fonte. “Parece uma habilidade burocrática para pôr as elétricas em sentido… todas, e não só a Endesa”, finaliza, ironizando, sobre a validação das faturas incidir unicamente sobre a Endesa: “Convirá então consultar um bom jurista para aferir da legalidade desse tipo de legislação direcionada e seletiva”.