O direito à terra

Os riscos de incêndio são cada vez mais presentes e invadem as zonas rurais despovoadas e envelhecidas, onde a ruína e o despovoamento são consequência direta das políticas nacionais e europeias centradas num capitalismo agrário.

por Fernando Matos Rodrigues
Antropólogo, Investigador CICS.Nova UM/LAHB

«Entro nestas aldeias sagradas a tremer de vergonha. Não por mim, que venho cheio de boas intenções, mas por uma civilização de má-fé que nem ao menos lhes dá a simples proteção de as respeitar».

(in Miguel Torga, Diário VIII, 1960, pág. 42)

Que país é este que arde sem parar! Esta é sem dúvida a grande questão que se coloca num momento em que ardem os nossos montes, os nossos bosques, as nossas aldeias, as nossas vilas e as nossas cidades já começam a sentir o calor das chamas à porta. Os poucos animais domésticos que resistiram a esta política agrícola comum (PAC) também são vítimas do fogo e da tragédia que lhe está associada. Os pequenos proprietários rurais ficam cada vez mais pobres, mais sós e dependentes dos santos protetores.

As vítimas destes incêndios são sempre os pequenos proprietários, os pequenos grupos domésticos que assistem de forma desolada e impotente à perda dos seus bens, dos seus animais e das suas casas. O que está em causa não é só o valor material dos bens, mas acima de tudo o que eles representam como trajeto de vida e de memória familiar e social.

Desde o século XIX com a implementação do Liberalismo que a pequena propriedade e a pequena economia de montanha sofrem os primeiros ataques, com destaque para a substituição da sua estrutura rural e pastoril por uma agricultura e economia rural moderna e capitalista. Foi o fim das terras comunais e alodiais e o começo do emparcelamento das terras pela burguesia vintista para aí introduzir uma monocultura florestal com a introdução do pinho.

Este processo tem continuidade nas políticas de Oliveira Salazar, com o ataque às terras maninhas e aos pastos das serras para aí dar continuidade à indústria florestal, com destaque para a instalação dos Serviços Florestais, com as cargas policiais da GNR e da PIDE sobre os povos das aldeias e das serras que lutavam pelo direito às suas terras e ao seu modo de vida.

Durante a Revolução de 1974 este processo de emparcelamento e de centralização da propriedade rural sofreu um impasse, com a reivindicação às terras, aos montes, aos baldios por parte das comunidades agropastoris e pequenos trabalhadores rurais que fizeram chegar aos governos provisórios os seus direitos às terras que lhes haviam sido tiradas. Uma autêntica luta popular centrada num movimento para a recuperação dos baldios assente em Comissões de Camponeses.

Reivindicava-se uma nova lei sobre os Baldios, já que a lei do povoamento florestal de 1938 (cf. Lei n.º 1971, de 15 de junho de 1938) não garantia a defesa dos interesses das Comunidades Locais. Esta lei não garantia os usos, os costumes e as regalias dos povos, relativamente ao trânsito, aproveitamento das águas, fluição de pastagens, utilização de lenhas, madeira, e outros produtos florestais e exploração de minerais nos terrenos a arborizar.

É durante o regime democrático que é aprovada a nova Lei da Reforma Agrária e do Arrendamento Rural em 22 de julho de 1977, que retomará as politicas que vai conduzir o país para a adesão à PAC e com consequências significativas na organização da estrutura agrária e florestal do nosso país.

A implementação destas políticas de pendor neoliberal ao território nacional, adicionando-lhe o envelhecimento da estrutura demográfica e o respetivo despovoamento conduzem o país rural para uma situação de pré-ruptura em termos sociais, económicos e demográficos. O desmantelamento da estrutura rural em benefício de uma nova economia da monocultura florestal centrada no eucalipto e na economia turística, provocam também uma perda de sustentabilidade ecológica e física destes territórios. Os riscos de incêndio são cada vez mais presentes e invadem as zonas rurais despovoadas e envelhecidas, onde a ruína e o despovoamento são consequência direta das políticas nacionais e europeias (EU) centradas num capitalismo agrário que fomentaram emparcelamentos, monoculturas exóticas e a produção industrial em detrimento da produção local de pequena e média escala, amiga do território e do ambiente.

Em suma, para colmatar o problema dos incêndios é necessário repor a economia local e familiar, repovoar as aldeias e as vilas do interior, fomentar uma política nacional que vá ao encontro da agricultura biológica, apoiar a expansão do gado local nas serras e nos montes. Repor as matas tradicionais mais resilientes ao fogo e às mudanças climáticas. Devolver às serras a sua autonomia e capacidade de desenvolvimento local e regional. Fomentar as feiras tradicionais, instalar novos serviços públicos no espaço local. Desenhar programas de colonização do espaço rural com base na diversidade económica, ambiental e social. Abandonar o tempo das grandes proclamações políticas e passar para a ação transformadora do território tendo em conta as mudanças climáticas e os novos desafios; aproveitar este tempo para rever o código jurídico de forma a despenalizar os usos e costumes locais.