Afinal não vem aí o fim do mundo

Se dúvidas existissem acerca da resistência do ser humano às adversidades, para além da história mundial ser o melhor argumento para derrotar teses mais pessimistas, o destino dos portugueses nas últimas semanas tem sido um verdadeiro desafio.

por Pedro Neves de Sousa
Advogado Cerejeira Namora, Marinho Falcão

O fim do mundo é uma expressão habitualmente associado à proclamação de uma visão catastrófica da vida, originado por crenças religiosas, escritos literários ou outras fontes dispersas que foram sedimentando uma ideia forte e consistente de combate ao doce e confortável conceito de eternidade.

Talvez por não se entender de onde vimos e para onde vamos, pelo menos na pureza de um pensamento científico despido de uma fé militante, ou até porque a nossa existência terrestre se limita, casando a sorte com a saúde e fazendo figas, a uma centena de anos.

Se dúvidas existissem acerca da resistência do ser humano às adversidades, para além da história mundial ser o melhor argumento para derrotar teses mais pessimistas, o destino dos portugueses nas últimas semanas tem sido um verdadeiro desafio. Desde a triste constatação do desmantelamento dos serviços públicos de saúde, à greve dos comboios, à total desordem nos aeroportos, à escalada incessante da inflação, aos dias tórridos e aos incêndios florestais, passando pelas imagens trágicas, e por vezes terrivelmente inolvidáveis, da já longa guerra na Ucrânia. Como agora se refere amiúde, pelo menos já não se fala apenas na pandemia.

Por vezes, ficamos com a ideia de que o conceito de fado, numa lógica bem lusitana, bateu à nossa porta e ficou agarrado à pele. Ou que a vida nos encaminha para um processo mundial de estupidificação, como descreve de forma original Patrik Ouredník, escritor checo radicado em França, no seu livro O Fim do Mundo Não Terá Acontecido. Tal como a personagem Gaspard Boisvert, tentamos escapar – embora não partilhando da inusitada e subversiva fatalidade apocalíptica e fugindo da depressão e do esgotamento nervoso – das certezas absolutas que a sociedade nos vai transmitindo e impondo.

Recorrendo novamente a Ouredník, e lendo devagarinho a interessante dança de palavras, «o abuso de inteligência impede que se compreenda a estupidez e, por conseguinte, que a ela se possa resistir. Deste modo, a partir de um certo grau, a inteligência torna-se suficientemente estúpida para considerar a estupidez tão inteligente como ela própria».

E não raras vezes damos por nós a pensar que os nossos sonhos são amarrados pelo cretinismo de quem nos governa, ignorando que, para além de uma vontade natural e própria que habita dentro de nós, temos ainda uma Constituição que consagra a liberdade de expressão e de pensamento. Mas tal como sucede com o direito ao voto e outros congéneres, existe um inexplicável desinteresse dos portugueses pelos direitos cívicos adquiridos. Como se não importasse, como se alguém resolvesse os nossos problemas, como se algo mudasse apenas com um estalar de dedos ou com uma varinha mágica ou como se viesse aí o fim do mundo.

A expressão do pensamento livre, a construção de uma visão individual crítica da vida coletiva e do papel do Estado, das instituições e dos cidadãos, a participação cívica, o reforço da tolerância e do respeito pelos outros não serão certamente a panaceia para todas as maleitas que nos afetam enquanto sociedade, mas afugentarão a perigosa ideia de que o fim do mundo está próximo e que é possível sermos todos mais felizes.